Professa o Evangelho: "Ele deve derramar o seu sangue e cobri-lo de terra. Não deveis tomar o sangue de carne alguma, pois a vida de toda carne é o seu sangue. Qualquer pessoa que tomar dele será cortada” (Levítico - 17:13,14).
O que ocorreu é que uma decisão tomada recentemente por uma juíza da cidade de Santana (SP) reacendeu a discussão sobre o direito do paciente em negar a transfusão de sangue por motivo de crença religiosa, mesmo que isso implique em risco de morte.
O caso em questão é um pouco distinto, pois envolve também o plano de saúde. Nessa decisão, a magistrada determina que o plano autorize a realização da técnica denominada Patient Blood Management (Gestão de Sangue do Paciente), que permite minimizar a perda de sangue do paciente durante procedimentos médicos e cirúrgicos, como alternativa à transfusão de sangue propriamente dita.
Em sua decisão, a juíza deixa expresso o valor da liberdade religiosa, como princípio constitucional, para determinar a realização da técnica PBM.
A propósito, essa discussão está permeada de dois princípios constitucionais: o direito à vida e à liberdade religiosa. Se, por um lado, o bem maior da vida é a própria vida, como valor superlativo e insuperável, por outro, o direito de escolha e de liberdade do cidadão, se exercido de modo consciente e inequívoco, também expressa um grande valor em jogo, que é o da dignidade da pessoa humana.
A esse respeito, há o enunciado 403 do Conselho Federal de Justiça (CFJ), que serve de norte às decisões tomadas pelo Judiciário, do qual se extrai: "o Direito à inviolabilidade de consciência e de crença, previsto no artigo 5º, VI, da Constituição Federal, aplica-se também à pessoa que se nega a tratamento médico, inclusive transfusão de sangue, com ou sem risco de morte, em razão do tratamento ou da falta dele, desde que observados os seguintes critérios: a) capacidade civil plena, excluído o suprimento pelo representante ou assistente; b) manifestação de vontade livre, consciente e informada; e c) oposição que diga respeito exclusivamente à própria pessoa do declarante".
Então, verificado que o paciente goza de plena capacidade civil e manifesta livre e conscientemente a sua vontade em não se submeter a determinado tratamento médico, tendo fundamento na sua própria crença religiosa, deve prevalecer a autonomia privada, não podendo o Estado e quem quer que seja impor ao paciente o procedimento por ele recusado.
Por outro viés, existe um grande dilema ético entre os profissionais de saúde, justamente por conta desse aparente embate dos valores em questão, em prestar assistência e preservar a vida do paciente e em respeitar a sua autonomia de vontade e a sua crença religiosa, de sorte que a atuação mal refletida do profissional de saúde em casos assim, sem observar os critérios para a adoção do procedimento adequado, poderia levá-lo a responder criminalmente, inclusive, por eventual ocorrência com o paciente.
Se acrescentarmos a essa discussão a questão da auto eutanásia, que, ao contrário, é proibida no Brasil e em grande parte do mundo, perceberemos que esse é mesmo um dilema insolúvel. Para Nietzsche, enquanto a vontade livre absoluta tornaria o homem um deus, o princípio fatalista o tornaria um mero autômato.
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