Recentemente, o Supremo Tribunal Federal enfrentou o tema da Repercussão Geral 1087 (ARE 1225185), fixando significado para o princípio da “soberania dos veredictos” no Tribunal do Júri, o qual tem a competência para julgar o mais grave crime, o doloso contra a vida. Essa nova definição, contudo, ainda deixa uma brecha incômoda para o sistema de justiça brasileiro.
Grosso modo, uma tese interpretativa professava que soberania popular significa dizer que um Tribunal de Justiça, no caso de recurso, não pode cassar a decisão de absolvição do réu, mesmo que reconhecidos autor e materialidade do homicídio, em manifesta contradição com as provas, considerando o poder de clemência do povo.
Por outra corrente, o Ministério Público defendia o limite desse poder, já que a lei prevê recurso próprio para decisões dissonantes das provas dos autos (art. 593, III, “d”, c/c o § 3º do CPP) e que a soberania se materializa em novo julgamento popular, alinhada com os princípios do contraditório e duplo grau de jurisdição.
Em meio termo, a recente decisão da Corte propôs inesperada definição. Reconheceu um poder de clemência popular passível de recurso, sob controle dos Tribunais de Justiça, estabelecendo critérios: a) deve ser arguida em plenário e registrada em ata; b) não pode violar a Constituição Federal e os precedentes vinculantes do STF.
Uma análise atenta demonstra a ilusória pretensão. Primeiro, porque a “clemência controlada” não supera os riscos envolvidos no julgamento, erros de votação cometidos pelos jurados ou o medo que pode prevalecer sobre a intenção de condenar um réu perigoso.
Ela também não é capaz controlar os juízos subjetivos que legitimam preconceitos extremos ao admitir a impunidade de homicídios praticados contra grupos vulneráveis em suas condições existenciais, como a população LGBTQIAP+, mulheres e negros etc.
A raiz desse problema reside na estrutura do rito do júri. Produto da era Vargas, nosso arcaico modelo francês - há muito rejeitado na França -, é incoerente com o recorte do pragmático quesito norte-americano introduzido no Brasil com a reforma do CPP (Lei nº 11.689/08). Esse conjugado potencializou juízos egocêntricos incontroláveis, somados por decisões isoladas de jurados incomunicáveis, algo inconcebível em muitos países.
Com efeito, na prática, a tese do controle é falha, pois ainda que não sejam verbalizados e registrados fundamentos ilícitos em plenário do júri (como a tese de legítima defesa da honra nos feminicídios, vedada pelo precedente da ADPF nº 779 do STF), o preconceito estrutural vivo ainda pode influenciar decisões de leigos, constituindo fator determinante da absolvição sem provas.
Ou seja, a defesa sustenta que o réu mudou de vida, que hoje é religioso, honesto e zeloso pai, mas se aquilo que realmente motiva o jurado em seu voto de absolvição é o preconceito velado que reduz a importância da vida da mulher vitimada, haverá afronta à Constituição Federal.
E por aí trafegaram, lado a lado, na lida forense, as aparentes licitudes da clemência, devidamente registradas em atas, cujos fundamentos, todavia, omitiram as verdadeiras essências das motivações violadoras dos mais caros direitos humanos e garantias fundamentais.
Enfim, a brecha legitima a velha estrutura que a Carta Maior pretendeu superar, encobrindo sob manto formal a impossibilidade de novo júri sobre absolvições errôneas, temerosas, racistas, sexistas, homofóbicas etc., afrontando não só provas, mas os essenciais valores constitucionais, o que é inadmissível.
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