O primeiro semestre de 2024 foi marcado por mudanças legislativas nas regras para o sistema penal, como o fim da saída temporária de presos, e sobre decisões da Justiça que vão afetar o encarceramento, como a descriminalização do porte de maconha decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
Em meio a discussões bastante polarizadas sobre esses temas, muitas vezes deixa-se de lado a explicação sobre quem são, afinal, as pessoas presas no Brasil.
A população carcerária em celas físicas no Brasil é de 663 mil pessoas, a grande maioria composta por homens, segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, órgão do Ministério da Justiça.
Os homens presos são mais de 634 mil, cerca de 96% dos presos. As mulheres são os outros 4%, mais de 28 mil detentas.
Os últimos dados são do 1º semestre de 2024.
Considerando não apenas as celas físicas, mas também as pessoas em prisão domiciliar ou monitoramento eletrônico, o número de pessoas com restrição de liberdade no Brasil sobe para 888 mil.
A população carcerária brasileira é uma das maiores do mundo em números absolutos.
Apenas Estados Unidos, com 1,76 milhão de presos, e China, com 1,69 milhão, têm mais presidiários, segundo o World Prison Brief, levantamento mundial do Institute for Crime and Justice Research e da Birkbeck University de Londres.
"Nos últimos anos, no Brasil, tem havido uma política de endurecimento contra o crime em geral sem que se faça um estudo mais aprofundado das razões que levam à prática do crime", afirma Hugo Almeida, membro da Comissão de Política Penitenciária da OAB/SP e pesquisador afiliado ao IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).
"Vão se criando leis que aumentam o tempo de pena e criam mais dificuldades para que essas pessoas que estão presas saiam dessa condição", diz Almeida.
"É um alargamento da porta de entrada e um estreitamento da porta de saída das pessoas do sistema penal. E o resultado é obviamente uma inflação da população carcerária."
Um dado importante é que boa parte dessas pessoas sequer chegou a ser condenada: quase 30% das pessoas encarceradas no Brasil estão em prisão provisória — são 183 mil aguardando julgamento.
"Isso é uma violação muito grave de direitos", afirma Gabriel Sampaio, ex-membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
Pela legislação, as prisões preventivas deveriam acontecer apenas em último caso e deveriam ser avaliadas no máximo a cada três meses para evitar que pessoas inocentes fiquem presas desnecessariamente. Mas na prática isso não acontece.
"Se a pessoa é condenada, esse tempo é retirado da pena dela. Mas se a pessoa é absolvida, ninguém devolve esses meses — e às vezes anos — que ela passou encarcerada sendo inocente", diz Sampaio, que também é diretor de litigância e incidência da Conectas, entidade de defesa de direitos humanos.
Cerca de 48% da população carcerária é composta por pardos e cerca de 15,6% são preto, enquanto brancos compõem 28%. Amarelos são menos de 1% e indígenas são 0,1%. Para o restante — cerca de 44 mil pessoas —, o sistema não tem informações sobre a raça.
Somados, pretos e pardos respondem por 63% das pessoas encarceradas, enquanto compõem 55,5% da população.
Essa discrepância, segundo os pesquisadores, expõe o racismo estrutural do país, ou seja, uma discriminação histórica que dificultaria a ascensão social de negros.
"Os números são um retrato de um sistema que atinge desproporcionalmente homens jovens e negros e cuja raiz é histórica", diz Sampaio.
"Temos que lembrar da ausência de políticas públicas para integração da sociedade dos negros depois da escravidão. A legislação penal foi e é usada no Brasil, desde os primeiros códigos penais, para criminalizar a população negra."
Existe uma seletividade penal na Justiça brasileira, afirma Sampaio, que faz com que crimes cometidos por pessoas brancas sejam menos punidos.
"Crimes contra a Previdência, corrupção e fraudes no pagamento do fundo de garantia — cuja proporção em termos pecuniários é maior do que um furto — não recebem o mesmo tratamento do Estado", afirma Sampaio.
Segundo Hugo Almeida, essa seletividade na criminalização, ou seja, essa escolha do que o Estado decide punir com mais rigor e onde o Estado decide aplicar a lei se refletem também em outro dado: o fato de que a grande maioria dos presos têm baixa escolaridade.
Cerca de 44% dos presos não completaram o ensino fundamental e outros 6% sequer chegaram a ter qualquer nível de educação formal.
Os dados mostram que o tráfico de drogas é o crime que mais leva pessoas à prisão no Brasil.
Havia cerca de 173 mil pessoas presas por esse crime no 1º semestre de 2024, quase 24% do total.
No entanto, após a decisão do STF que descriminalizou o porte de até 40 gramas de maconha, em junho, espera-se uma diminuição das pessoas presas por tráfico, ainda que a liberação não seja automática.
A Justiça precisa analisar caso a caso os pedidos de liberdade.
Dependendo do caso, explica Almeida, pode ser necessária pedir uma revisão criminal - termo jurídico para quando se abre novamente um processo no qual já havia existido uma condenação.
Além disso, mesmo que a pessoa esteja com menos de 40 gramas da droga, é possível que o juiz decida, com base no contexto, que a pessoa estava praticando tráfico - se ela tiver outros indícios que estava fazendo uma venda.
Tudo isso pode demorar.
"Como a decisão do STF é de junho e os dados ainda são do primeiro semestre, ou seja, até julho, ainda não deu tempo de isso se refletir estatisticamente", afirma Almeida, do IBCCrim.
Além dos crimes previstos na Lei de Drogas, os outros que mais levam à prisão no Brasil são crimes contra o patrimônio: roubo qualificado (13,9%), roubo simples (7,9%) , furto simples (4,8%) e furto qualificado (4,5%). Juntos, eles correspondem a 31% dos registros.
"A gente tem uma preocupação muito maior com o patrimônio do que com outras situações tão graves ou até mais graves", afirma Hugo Almeida. "Presos por homicídio correspondem a 12%, um número tão baixo porque a quantidade de homicídios solucionados é muito baixa."
Segundo Almeida, isso também é reflexo de uma política penal que prioriza as preocupações da classe alta.
"A gente tem um número de homicídios que, embora seja expressivo, não atinge tanto a população de classe alta. Geralmente eles acontecem nas periferias. E os crimes contra o patrimônio acontecem mais nas regiões centrais", diz ele.
"Enquanto isso, o crimes contra a pessoa, contra a vida e a integridade pessoal, acontecem mais na periferia. Então existe uma escolha de punir os crimes que atingem mais quem tem maior condição patrimonial do que os que atingem as pessoas mais periféricas."
O fornecimento de educação e a possibilidade de trabalhar na prisão são previstos pela legislação brasileira.
Mas somente 18% dos presos hoje têm acesso à educação e somente 23,9% dos presos têm acesso ao trabalho, de acordo com dados do Ministério da Justiça.
A ampliação de vagas de estudo e trabalho para os presos é apontada há anos como uma necessidade urgente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável por fiscalizar o Judiciário.
Em 2020, o CNJ assinou uma cooperação com o Ministério Público do Trabalho e com a Confederação Nacional dos Municípios para dar início ao plano de geração de trabalho para pessoas privadas de liberdade e egressas do sistema prisional.
Desde então, a porcentagem de presos que trabalham subiu de 13% para 23,9%, mas ainda está muito longe do ideal, diz Gabriel Sampaio.
"Eles são essenciais para a reabilitação de quem cometeu um delito e sua reintegração na sociedade, mas acima de disso, são direitos dos presos", afirma Sampaio.
Outro mecanismo que era previsto como parte da reintegração à sociedade é a saída temporária para presos no regime semiaberto.
Caso cumprissem uma série de requisitos, como boa conduta e ausência de sinais de periculosidade, eles poderiam sair da prisão cinco vezes ao ano por até sete dias corridos para visitar a família, estudar e participar de atividades de ressocialização.
Em 2024, no entanto, o Congresso acabou com essa possibilidade, mantendo a saída somente para estudos.
Um dos argumentos usados pelos deputados foi a possibilidade dos detentos em saídas cometerem crimes ou não retornarem.
Segundo os dados do sistema prisional, 6% das saídas de presos resultaram em "abandono", ou seja, em casos em que as pessoas não retornaram à prisão — percentual que se manteve constante desde o início da aplicação da medida.
De acordo com os dados do Ministério da Justiça, há um total de 488 mil vagas sendo ocupadas por uma população prisional de 663 mil pessoas, ou seja, uma superlotação de 32%.
Além da falta de julgamento e da superlotação, há outras graves violações de direitos no sistema prisional brasileiro - o próprio STF reconheceu, em decisão unânime em outubro de 2023, que o atual estado do sistema carcerário é "inconstitucional" e que há uma "massiva violação de direitos fundamentais nos presídios".
O decisão afirma que há uma violação dos direitos à integridade física, alimentação, higiene, saúde, estudo e trabalho.
"É um sistema que não conseguem reintegrar as pessoas à sociedade, como é previsto pela Constituição", afirma Sampaio.
Hugo Almeida afirma que, embora a prisão seja necessária, a simples ampliação do encarceiramento não tem resolvido o problema da criminalidade no Brasil.
Para Gabriel Sampaio, da Conectas, o Brasil prende muito e de forma desordenada, mas não resolve a criminalidade e a violência.
"A população carcerária gigantesca é um reflexo da escolha por uma política criminal populista e que não traz resultados, é ineficaz", afirma Sampaio.
Cerca de 51% dos delitos que levam ao encarceramento no Brasil são crimes não violentos.
Segundo Sampaio, ampliar alternativas penais para crimes sem violência — e aplicá-las — seria uma das medidas que poderiam contribuir para amenizar a "crise crônica de excesso de encarceiramento" no Brasil.
Almeida concorda.
"Você pode usar outras medidas cautelares, como tirar o passaporte, proibir o sujeito de frequentar determinados lugares, que ele compareça periodicamente em juízo", afirma.
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