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A pesquisa do Butantan sobre veneno de peixe que foi revisada por crianças

A pesquisa do Butantan sobre veneno de peixe que foi revisada por crianças

O trabalho identificou uma proteína no veneno de um peixe brasileiro que tem potencial de virar remédio contra doenças inflamatórias. Segundo os autores, trocas de ideia com o público infantil ajudam a aproximar a sociedade de conceitos complexos

Publicado em 1 de agosto de 2023 às 14:57

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Imagem BBC Brasil
Molécula descoberta num peixe peçonhento chamado niquim foi testada no zebrafish (foto). (Plataforma Zebrafish)

Um grupo de pesquisadores do Instituto Butantan, em São Paulo, publicou um artigo na Frontiers for Young Minds, uma revista científica revisada e editada apenas por crianças.

A equipe brasileira, que investiga venenos de peixes peçonhentos, descreveu os detalhes de um experimento que avaliou uma molécula chamada TnP (entenda abaixo).

Essa substância tem o potencial de virar, no futuro, um tratamento contra doenças inflamatórias, como asma e esclerose múltipla, de acordo com os pesquisadores.

Segundo os cientistas envolvidos no projeto, interagir com as crianças ajudou a simplificar conceitos e reforçou a importância do trabalho que eles fazem na bancada do laboratório.

Mas, para entender essa história, é preciso conhecer os detalhes sobre dois peixes com características únicas: o niquim e o zebrafish.

Imagem BBC Brasil
Ilustração feita por cientistas do Butantan mostra o niquim e onde estão localizados os espinhos que inoculam o veneno. (Plataforma Zebrafish)

O encontro de espécies no laboratório

Desde sua fundação, o Instituto Butantan é referência nacional e internacional no estudo de venenos e na produção de soros para tratar acidentes com cobras e aranhas.

Mas o centro de pesquisas também possui há algumas décadas um grupo que estuda especificamente os venenos de peixes.

Pouca gente sabe, mas alguns representantes desse grupo de animais também possuem peçonha, e podem inocular substâncias nas vítimas.

É o caso, por exemplo, de alguns bagres, das arraias e do niquim — este último, aliás, é um dos focos de pesquisa no Butantan.

“Quando acidentes com peixes acontecem, a pessoa sente muita dor, inchaço e vermelhidão. A pele acometida também pode sofrer um processo de necrose”, explica a farmacêutica Carla Lima, do Laboratório de Toxinologia Aplicada (Leta) do Butantan.

Embora acidentes do tipo não matem, eles representam um grande problema para turistas desavisados e, principalmente, aos pescadores, que podem sofrer com vários episódios repetidos do tipo durante o trabalho.

Ao lado das arraias e dos bagres, o niquim está entre os principais causadores de acidentes entre os peixes brasileiros. Essa espécie, cujo nome científico é Thalassophryne nattereri, costuma viver em águas levemente salgadas, na transição entre rios e mares. É mais encontrado mais na região Nordeste do Brasil.

A questão é que o niquim gosta de ficar enterrado na areia — e um transeunte desavisado acaba pisando nos espinhos do peixe, localizados nas laterais e na parte superior do corpo do animal, por onde o veneno passa.

Ao fazer análises sobre o veneno que é inoculado pelo niquim, os especialistas do Butantan identificaram a tal TnP (sigla em inglês para peptídeo do Thalassophryne nattereri).

Eles sintetizaram quimicamente a molécula e começaram a fazer os primeiros testes em laboratório. Em roedores, a substância foi capaz de tratar quadros inflamatórios parecidos com asma e esclerose múltipla (uma doença que afeta o sistema nervoso central).

E é justamente aqui que entra o segundo peixe na história: o zebrafish (Danio rerio) é utilizado como modelo experimental nos testes com a TnP.

O nome em inglês, “peixe zebra”, faz alusão ao fato de o bicho ter listras pelo corpo.

Imagem BBC Brasil
Seres humanos e zebrafish compartilham 70% do DNA. (José Felipe Batista e Renato Rodrigues/Comunicação Butantan)

O biólogo Rodrigo Disner, pesquisador de pós-doutorado no Leta do Butantan, diz que trabalhar com essa espécie traz inúmeras vantagens.

“Para começar, em termos genéticos, o DNA dele é 70% igual ao nosso. Isso permite entender no zebrafish muitos fenômenos que nos afetam, como a resposta imunológica e inflamatória”, diz ele.

Em segundo lugar, esse peixe tem um desenvolvimento muito rápido — em apenas 72 horas após a fecundação, a maioria dos órgãos dele já está funcionando. Para ter ideia, um zebrafish cresce em um dia o equivalente ao que um embrião humano demora um mês.

Ainda nessa seara, os embriões desse peixe são quase transparentes, o que facilita a visualização das estruturas internas dele.

“E o fato de eles serem pequenos também facilita, pois podemos mantê-los nos biotérios sem a necessidade de uma estrutura física muito grande”, complementa Disner.

Em termos práticos, todo esse pacote de vantagens faz o zebrafish ser um modelo muito usado em várias pesquisas Brasil afora atualmente.

“Ele também virou um símbolo, que ajuda as pessoas a se conectarem e entenderem a importância do trabalho que realizamos”, complementa o biólogo.

O TnP sintetizado em laboratório foi testado no zebrafish — e, nesses experimentos iniciais, mostrou-se seguro ao não causar efeitos colaterais dignos de nota.

As investigações com a molécula devem seguir adiante no laboratório. Se os resultados continuarem positivos, é possível que daqui a alguns anos ela seja testada em seres humanos com o objetivo de virar um potencial remédio contra as doenças inflamatórias.

Essa não seria a primeira vez que o veneno serviria de inspiração para tratamentos: o captopril, um dos fármacos mais usados contra a pressão alta, surgiu a partir de uma substância identificada no veneno da jararaca (Bothrops jararaca).

E é importante deixar claro: o veneno do niquim não serve como tratamento para doenças inflamatórias. Uma substância específica presente ali foi isolada e está sendo pesquisada para quem sabe, no futuro, virar um remédio. Por enquanto, ainda não se sabe se de fato ela terá eficácia de verdade contra problemas de saúde que afligem humanos.

Imagem BBC Brasil
Embrião do zebrafish (na tela do computador) é quase transparente, o que facilita na hora de analisar as estruturas internas . (José Felipe Batista e Renato Rodrigues/Comunicação Butantan)

Da descoberta à publicação

Geralmente, qualquer pesquisa passa por algumas etapas de avaliação e edição antes de ser publicada num periódico especializado.

Esse trabalho é realizado por cientistas independentes, que não têm relação com o estudo, embora sejam grandes conhecedores daquela área.

Nesse processo tradicional, os autores do artigo e os revisores não têm contato — justamente para evitar qualquer influência nas decisões sobre publicar ou não aquele achado.

No caso da revista Frontiers for Young Minds, porém, essa dinâmica é diferente: o artigo é revisado por crianças de escolas americanas que, com auxílio de professores, apontam as principais dúvidas e pontos que precisam ser reformulados.

Os cientistas-autores da pesquisa e os revisores mirins têm reuniões e conversas, justamente para que o texto final fique o mais claro e detalhado possível — afinal, a ideia é que todo mundo, especialista ou não, possa entender aquilo que está escrito.

O grupo do Butantan, por exemplo, relata que recebeu sugestões das crianças, como incluir algumas ilustrações sobre a anatomia do niquim e as etapas de desenvolvimento do zebrafish, detalhar melhor algumas descrições e acrescentar um glossário de palavras mais complicadas ao final do artigo.

Lima destaca que o instituto já possui várias iniciativas de divulgação científica — e eles inclusive levam os mais jovens para conhecer o laboratório —, mas a publicação da pesquisa numa revista revisada por crianças foi uma experiência diferente.

“Talvez o nosso grande desafio como cientistas é conseguir demonstrar a grandiosidade de nosso trabalho de modo que todas as pessoas possam entender”, aponta ela.

“E quando saímos de nossa zona de conforto e conversamos com o público, podemos até aprimorar nosso próprio trabalho e encontrar respostas para algumas perguntas”, conclui a farmacêutica.

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