Diante da escassez de leitos de UTI e do aumento da demanda por esse tipo de terapia gerada pela pandemia de Covid-19, o país precisará de novas ferramentas para a tomada de decisões de forma objetiva e transparente.
O uso de algoritmos, de inteligência artificial e de eventuais medidas adotadas em outros países que encaram o mesmo dilema estão entre as possibilidades, segundo especialistas.
A Itália estuda priorizar leitos para as pessoas com mais chances de sobrevivência, usando critérios como idade e doenças preexistentes.
A Espanha resolveu integrar serviços públicos e privados de saúde. Haverá uma espécie de lista única de leitos de UTI, que serão alocados de acordo com as necessidades.
O Brasil já enfrentava escassez de leitos de UTI no SUS antes do novo coronavírus chegar. Mais da metade das regiões de saúde (316 de 436) dispõe de menos leitos do que o necessário, segundo recente estudo do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde).
"Todo intensivista que trabalha em UTIs do SUS no país faz 'escolhas de Sofia' diariamente. Às vezes são dez, 20 pacientes disputando um único leito", afirma o médico Daniel Neves Forte, atual presidente do Comitê de Bioética do Hospital Sírio-Libanês.
Forte participou de um estudo feito na Faculdade de Medicina da USP que desenvolveu um algoritmo para auxiliar médicos no momento de tomada de decisão, tornando o processo de triagem de leitos de UTI mais transparente.
A ferramenta usa diretrizes e critérios aprovados pelo Conselho Federal de Medicina e pela Amib (Associação Brasileira de Medicina Intensiva).
O algoritmo parte de quatro perguntas padronizadas, respondidas pelo médico que solicita a vaga da UTI. Por exemplo, quais outras doenças o paciente tem além da daquela que motivou a ida para a UTI. Conforme as respostas, o algoritmo classifica o paciente na prioridade correspondente.
Na atual realidade, um paciente classificado como prioridade 4, por exemplo, teria, além da Covid-19, uma doença em fase final de evolução (câncer ou Alzheimer) com pouca ou nenhuma chance de recuperação, quando comparada com paciente prioridade 1, sem doença prévia e com chance de recuperação completa.
Ao final do estudo, que envolveu duas etapas, a conclusão foi que o uso de algoritmos pode reduzir internações potencialmente inapropriadas.
"O ideal era ter um leito para todo mundo. Mas quando você não tem, o que você faz?", questiona Forte. Para ele, a pandemia de Covid-19 colocou o mundo inteiro na pele de um paciente e de um médico do SUS. "É um peso muito grande nas costas de todo mundo. Na Itália, estão fazendo triagem por idade. É um critério inadequado, mas numa situação de catástrofe as pessoas fazem o que conseguem."
Segundo Daniel Wang, é importante que decisões sobre alocação de vagas de UTI sejam balizadas por critérios estabelecidos. "Quando há receio de iminente desastre, é melhor que critérios sejam acordados antes que o pior aconteça."
Na Itália, já existem regiões dando prioridade para pacientes para os quais é esperada alta mais rápida. "Isso permite a maior rotatividade na UTI e aumenta o número de pessoas que podem se beneficiar." Outro critério discutido seria priorizar pessoas com maior expectativa de vida ou com maiores chances de vida com qualidade após deixar a UTI.
Ou seja, pessoas mais jovens e idosos com menos doenças associadas teriam mais chances. "Eticamente é muito controverso. Precisamos discutir se a sociedade considera isso aceitável." Também se discute se profissionais de saúde deveriam ter prioridade nos leitos em razão da escassez em momento de tragédia, pela demora em treinar substitutos e pela chance de retorno ao trabalho para salvar mais vidas.
Para Wang, uma saída que poderia evitar esses dilemas éticos é fazer o que Espanha fez: centralizar a distribuição de leitos públicos e privados.
"Pacientes públicos e privados na mesma fila, distribuídos igualmente. Com isso, evita-se hospitais públicos sobrecarregados e privados, ociosos. Será muito traumático para a sociedade se quem tem grana ficar bem e quem é pobre morrer feito barata."
Segundo ele, é melhor discutir essas questões enquanto o país ainda consegue respirar do que deixar para quando a coisa apertar. "A urgência das decisões não vai permitir qualquer tipo de deliberação. Critérios claros acordados com muita gente de alguma forma distribui o ônus da decisão, não deixa só para o profissional lá da ponta o ônus moral."
Mas ele reforça que eventuais decisões precisam estar formalizadas legalmente por meio de norma do Ministério da Saúde e/ou de resolução do Conselho Federal de Medicina.
Para Alexandre Chiavegatto Filho, diretor do Labdaps (Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde da USP), a triagem de paciente será um ponto crucial na pandemia e a inteligência artificial poderá ser importante na tomada de decisões diante da escassez de leitos e de ventilação mecânica.
"Ela aprende rapidamente a fazer interações de fatores, mostrando qual o paciente com prioridade de internação em UTI, qual o paciente com pior prognóstico clínico, e qual o risco de vir a óbito nas próximas semanas."
Os algoritmos poderão ajudar na escolha de pacientes prioritários para realizar testes diagnósticos do Covid-19, a partir do exame de sangue.
"Eles conseguem entender qual o risco real daquele paciente ter Covid-19 e se tem prioridade na confirmação no diagnóstico." Hoje, hospitais públicos têm levado até 12 dias para obter essa confirmação.
Segundo ele, os pesquisadores do laboratório estão atrás de dados e buscando parceria com outros hospitais para trabalharem nos algoritmos específicos que poderão ser usados na pandemia. "É uma doença para a qual os médicos ainda não conseguem definir os protocolos mais adequados para lidar. Nossa ideia é que algoritmos possam auxiliá-los."
A inteligência artificial também está sendo usada na identificação de substâncias que podem frear o avanço da Covid-19. O Summit, supercomputador da IBM mais potente do mundo, já identificou 77 drogas com esse potencial, em lista de 8.000 candidatas.
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