Uma estudante negra obteve na Justiça o direito de se matricular na USP após denunciar a suspeita de que uma aluna aprovada à sua frente fraudou o sistema de cotas.
A ação foi movida pela Defensoria Pública em nome de Juliane de Souza Almeida, 21, classificada em primeiro lugar na lista de espera para pretos, pardos e indígenas (PPI) do curso de fisioterapia.
Ela conta que, ao ver a primeira chamada da Fuvest, checou os nomes dos aprovados nessa categoria da reserva de vagas para verificar se eles iam se matricular ou se já tinham escolhido outra instituição.
Ao ver as redes sociais, surpreendeu-se com a foto de uma das aprovadas, que indicava uma pessoa com fenótipo (aparência) branco.
Com apoio do Nucleo Ayé, que reúne estudantes negros da Faculdade de Medicina da USP, ao qual o curso de fisioterapia está vinculado, Juliane decidiu procurar a Defensoria.
Em outubro do ano passado, o órgão já havia enviado à universidade recomendação para a inclusão no processo seletivo de uma etapa de verificação da autodeclaração dos candidatos, de preferência por entrevista.
Atualmente, a USP exige apenas uma autodeclaração dos candidatos, mas uma resolução do Conselho de Graduação prevê que quem apresentar informações inverídicas no processo de inscrição pode ter a matrícula cancelada.
Na ação na Justiça, os defensores Isadora Brandão Araujo da Silva e Vinicius Conceição Silva Silva pedem que a USP aceite a matrícula provisória de Juliane, permitindo que ela frequente as aulas, até que seja instaurado e concluído procedimento administrativo para a decisão sobre a veracidade da autodeclaração prestada pela outra candidata.
"A ocupação, por um candidato socialmente lido como branco, de vaga reservada a negros (pretos e pardos) e indígenas evidentemente esvazia o efeito multiplicador que se busca com a política de cotas", escreveram. "Ver um indivíduo não negro utilizando-se das cotas para lograr aprovação em concurso público só causará aos negros (pretos e pardos) sentimentos de impotência e descrédito, ceifando, entre a comunidade negra, as expectativas de instrumentalização da ação afirmativa em prol de projetos de mobilidade social, bem como de promoção da almejada justiça racial."
Foram anexadas ao processo fotos da candidata aprovada em redes sociais com indícios de que ela não tem traços fenotípicos nem negros nem indígenas. Na última segunda-feira (9), o juiz Otavio Tokuda acolheu o pedido em decisão liminar (provisória).
"A autodeclaração não pode exonerar o Poder Público de verificar a veracidade do quanto foi afirmado. Não se pode esperar que a autodeclaração crie um vácuo no sistema jurídico a imunizar o declarante de qualquer análise por outro sujeito, seja a Administração Pública ou até mesmo outros candidatos", afirmou o magistrado.
Ele suspendeu a matrícula definitiva da candidata aprovada em primeira chamada e determinou que a USP instaure procedimento com entrevista pessoal para a verificação da veracidade da sua autodeclaração, que deve ser concluído em até 90 dias. Até lá, tanto ela quanto Juliane terão direito a matrícula provisória. Ambas poderão frequentar as aulas.
A Defensoria pediu que o nome da suposta fraudadora não seja divulgado para evitar perseguições no ambiente universitário e uma personificação do debate. A discussão, diz Isadora, deve se centrar no que ela vê como uma omissão da USP no combate às fraudes.
No final do ano passado, a universidade afirmou que investiga casos de pelo menos 21 estudantes suspeitos de fraudar o sistema de cotas da universidade.
Na quinta-feira (12), a USP afirmou que o caso já está sendo apurado pela Comissão de Acompanhamento da Política de Inclusão, ligada à Pró-Reitoria de Graduação.
"Desde maio de 2019, as denúncias de fraudes na autodeclaração de pertencimento ao grupo PPI do vestibular passaram a ser encaminhadas diretamente para a Pró-Reitoria, que determina a instauração de sindicância ou processo administrativo para a apuração dos fatos. Em relação à liminar, a Universidade adotará as medidas cabíveis, em especial no que tange à determinação de matrícula provisória."
Com a decisão em mãos, Juliane conseguiu fazer a matrícula na quarta-feira (11). O momento coroou uma trajetória de estudos permeada por dificuldades. Foram três anos de cursinho popular, com a mãe, costureira, trabalhando em tempo integral. O pai, vigilante, está desempregado.
Juliane chegou a ser aprovada em 2017 na UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e, no ano seguinte, na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Sem condições financeiras para se manter fora de São Paulo, no entanto, ela não fez a matrícula.
No final de 2019, foi diagnosticada com transtorno de déficit de atenção. Passou a receber acompanhamento especializado todo mês, prestou a Fuvest e tinha certeza de que tinha passado, até ver seu nome no primeiro lugar da lista de espera.
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