No dia 8 de abril, uma sexta-feira, o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) do Recife foi chamado para atender 26 alunos da Erem (Escola de Referência em Ensino Médio) Ageu Magalhães, que passavam mal com uma crise coletiva de ansiedade, apresentando sintomas como sudorese, saturação baixa e taquicardia.
Esse episódio, ocorrido na semana de provas, levantou a discussão sobre os danos psicológicos provocados pela pandemia de Covid-19 nos estudantes, que voltaram em 2022 para as aulas 100% presenciais após dois anos de ensino a distância, longe da rotina escolar.
É apenas um entre vários problemas vividos Brasil afora nas salas de aula desde o início do ano letivo. Além das crises de ansiedade, educadores tiveram de lidar com casos de automutilação, de falta de concentração, de desobediência e, principalmente, de violência.
"Esses dois anos de paralisação nas escolas foram devastadores. A expectativa era que a gente tivesse problemas de readaptação, mas a realidade foi muito pior", afirma Mauro Aguiar, diretor do Colégio Bandeirantes, na zona sul de São Paulo, e conselheiro estadual de educação.
"Os alunos perderam aquela noção de tempo, de assistir às aulas e de prestar atenção, e têm dificuldade com coisas básicas, como a hora de falar e a forma como se dirigir a um adulto."
Segundo Vagner da Silva, coordenador pedagógico do ensino médio do Colégio Agostiniano Mendel, na zona leste de São Paulo, os estudantes que já possuíam algum tipo de problema psicológico ou emocional antes da pandemia foram os mais afetados com a volta ao presencial.
"Nosso maior desafio é fazer o corpo discente reaprender a estudar e a ser estudante. O formato online supriu uma demanda de momento, mas não conseguiu tornar a aprendizagem eficaz, o que criou uma verdadeira lacuna no processo de ensino", afirma o educador, para quem adquirir uma rotina de estudos diários e realizar tarefas em casa parecem "práticas ultrapassadas" para muitos alunos.
A angústia dos estudantes pode ser explicada pelo sentimento de perda que tiveram na pandemia, diz Mario Augusto Vitoriano Almeida, coordenador do Conviva SP (Programa de Melhoria da Convivência e Proteção Escolar), da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.
Mauro Aguiar, do Bandeirantes, exemplifica: "A criança e, principalmente, o adolescente precisam de contato humano com seus pares de sua idade. Os pais têm seu papel importantíssimo, mas isso não dispensa o contato com os pares. De repente, isso tudo foi interrompido".
Os casos que mais aterrorizam os pais neste primeiro semestre têm sido os de automutilação, quando estudantes acabam se cortando como forma de descarregar a pressão. Foi o que aconteceu com uma adolescente do 9º ano do ensino fundamental do Bandeirantes, um dos mais caros e exigentes da capital paulista.
Segundo sua mãe, era comum a filha chegar em casa chorando, deitar-se no chão e falar que queria morrer. Depois ela descobriu que a menina estava se automutilando, assim como outros colegas de classe. A mãe disse que procurou o apoio da escola, mas não houve acolhimento.
Após levar um laudo médico atestando problemas psicológicos da filha, para que tivesse mais meia hora para fazer provas, ela afirma que o documento não foi aceito pelo colégio. A negativa a levou a transferir a aluna para outra escola, onde está mais calma e sem crises.
Em nota, o Colégio Bandeirantes afirma que possui uma equipe de orientação educacional formada por psicólogas e pedagogas para atender alunos e famílias que necessitam de apoio individual.
"O tema saúde mental é uma pauta permanente do colégio que busca criar espaços de diálogos, tanto para os alunos quanto para os professores e funcionários, abordando assuntos cruciais como desenvolvimento de competências socioemocionais e sociomorais, prevenção ao bullying e cyberbullying, como lidar com os desafios da adolescência e com sentimentos e emoções", diz a nota.
Na Escola Municipal Professor Anísio Teixeira, em Uberaba (MG), a diretora Edna Chimango percebeu os estudantes tensos no início do ano, o que fez com que os casos de automutilação, que eram cerca de dois para dez salas antes da pandemia, passassem para 26 até abril entre os alunos do 5º ao 9º ano do ensino fundamental.
Para tentar resolver a questão, ela criou o projeto Empatia, com o "objetivo geral de valorizar as relações respeitosas, focadas no bem, exercitando a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação". Após um mês do projeto, diz que os casos diminuíram quase 40%.
Almeida, coordenador do Conviva SP, afirma que os problemas psicológicos são iguais em qualquer escola, seja ela particular ou pública. "A dor é humana. E a automutilação é uma dor interna, muito mais que externa. Eu me cortar dói mais do que a dor que sinto internamente", diz, explicando por que os estudantes costumam recorrer à automutilação para aliviar os problemas emocionais.
Em abril, um mapeamento feito pela Secretaria da Educação de São Paulo identificou que 69% de mais de 642 mil estudantes da rede estadual relatam ter sintomas ligados à depressão e ansiedade.
A pasta também fez um levantamento sobre os casos de violência, que dispararam cerca de 45% neste ano em comparação ao período anterior à pandemia. "Em 2022 foram registrados 5.737 casos de violência, incluindo agressão física, ameaça, bullying, discriminação e ação violenta de grupos/gangues contra 3.937 no primeiro trimestre de 2019", informou a secretaria, em nota. "Quando há qualquer tipo de intercorrência, a direção da unidade entra em contato com os responsáveis pelos estudantes envolvidos para fins de mediação", completou.
Nos colégios particulares, o tipo de abordagem depende da direção. Enquanto alguns optam pelo trabalho coletivo, envolvendo as famílias em ações como palestras e trabalhos de conscientização, outros preferem ações individuais.
O primeiro tratamento foi elogiado pela mãe de três alunos do Agostiniano Mendel. A médica de 50 anos afirma que os filhos tiveram boa readaptação às aulas presenciais. Apenas um deles, de 17 anos, sofreu um pouco mais de ansiedade do que o normal.
Já uma jornalista de 44 anos reclama da estratégia do Colégio Singular, no ABC paulista. Ela conta que a filha menor, que cursa o 2º ano do ensino fundamental, levou um soco no rosto de um menino, que queria roubar um doce dela. E que a outra filha, do 5º ano, também foi agredida e acabou revidando. "É sempre meninos batendo em meninas, é isso que me preocupa. Futuros agressores começam assim", diz.
A mãe afirma que o colégio apenas avisou os pais dos casos. "Fui várias vezes à escola pensando que era só com minhas filhas, mas vi que é generalizado", critica.
O diretor pedagógico do Singular, Caio Augusto Campacci Zampol, afirma que o início do ano foi mais complicado porque muitos dos alunos nunca haviam entrado numa escola e reproduziam atitudes que faziam em suas casas.
"Durou uns dois meses de trabalho da coordenação e dos pedagogos, convocando as famílias. O que houve foi a opção por não fazer ações coletivas. É um momento delicado, por isso, fizemos trabalhos individuais para não expor as crianças", diz Zampol.
O Unicef, fundo das Nações Unidas para a infância, possui há um ano um canal anônimo de escuta para adolescentes e jovens de 13 a 24 anos, com o objetivo de reduzir a violência e abuso infanto-juvenil, automutilações, tentativas e finalizações de suicídios. O programa Pode Falar pode ser acessado pelo site ou pelo WhatsApp.
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