Enquanto o mundo declara guerra contra vírus e bactérias durante a pandemia causada pelo novo coronavírus, novas pesquisas comprovam o papel benéfico que alguns microrganismos têm para nossa saúde física e mental, mostrando que a relação com essas pequenas entidades é mais estreita do que imaginamos.
A microbiota é como uma impressão digital, única de cada pessoa, explica Ana Maria Caetano de Faria, médica e professora de Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
É no momento do parto que ela começa a ser formada, quando o recém-nascido tem contato com as mucosas da vagina e o ânus da mãe. Crianças nascidas de cesariana, porém, desenvolvem uma microbiota intestinal menos diversa, pois elas têm contato apenas com a pele da mãe, médicos e enfermeiros nesse primeiro momento.
Estudos sugerem que a menor variedade de bactérias no início da vida pode levar a menos proteção contra doenças infecciosas e alérgicas, mesmo na fase adulta.
"A microbiota que adquirimos nos primeiros anos fica conosco para o resto da vida. Podemos mudá-la tomando antibióticos, viajando para lugares diferentes ou com a alimentação, mas o arcabouço é aquele mesmo do início", diz Faria.
Algumas pesquisas desenvolvidas pelo mundo tentam corrigir esse desequilíbrio. Uma das mais recentes, publicada no início de outubro na revista científica Cell, relata um transplante de fezes da mãe para o bebê recém-nascido de cesariana. Os bebês receberam uma dose de 3,5 gramas ou 7 gramas das fezes da mãe diluídas em um pouco de leite materno.
Em cerca de três meses após o procedimento, a microbiota intestinal dos bebês que receberam o transplante mostrava um desenvolvimento parecido com a das crianças nascidas de parto normal.
Apesar de bem sucedido, o experimento é radical e delicado, segundo Faria. No estudo publicado, as fezes das mães passaram por uma sequência de testes para verificar a existência de bactérias que poderiam colocar os bebês em risco. Mais da metade das mães inicialmente recrutadas ficaram de fora do experimento após esses exames. Além disso, a pesquisadora lembra que impactos de longo prazo não são conhecidos.
"A microbiota é quase como um órgão. Ela tem um papel biológico muito importante. Essas bactérias ajudam na digestão, têm efeitos sobre o sistema nervoso e defendem de pequenos invasores, causadores de doenças", diz Leandro Araújo Lobo, professor do Instituto de Microbiologia Paulo de Góes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
De acordo com Faria, da UFMG, a relação dos humanos com sua própria microbiota é mutualística: "Damos a eles o habitat e os alimentos que estão no nosso intestino, e eles degradam alguns componentes durante a digestão, como as fibras, para produzir vitaminas A, K e B", afirma a cientista.
Faria acrescenta que algumas moléculas produzidas pelos micróbios se ligam a receptores na mucosa do intestino e induzem a produção de vários mediadores antiinflamatórios.
"Temos muitos linfócitos e células imunes no intestino, e a microbiota influência essas células diretamente, o que interfere na saúde geral do organismo. A microbiota é fundamental para manter essas células sem inflamação e prontas para funcionar quando for necessário", diz Faria.
Em março deste ano, um grupo de cientistas do qual Faria faz parte publicou um estudo que relaciona a microbiota do intestino com a hipertensão. Ao comparar as amostras de fezes de pessoas hipertensas com a de pessoas com parâmetros normais de pressão, os pesquisadores encontraram diferenças nas populações de bactérias nos intestinos desses dois tipos de participantes. Além disso, a microbiota dos hipertensos era menos diversa.
Os resultados foram divulgados na revista científica Frontiers in Pharmacology.
Evidências científicas sugerem que a saúde mental também pode ser afetada pelos microrganismos. Em um artigo publicado em 2016 no periódico científico Journal of Psychiatric Research pesquisadores de instituições da Europa mostraram que a microbiota intestinal pode ter um papel importante para o desenvolvimento de alguns sintomas de depressão.
Os cientistas transplantaram para ratos sem microbiota as fezes de pacientes com casos severos de depressão. Segundo os resultados divulgados, o transplante induziu características comportamentais e fisiológicas próprias da depressão nos animais.
Os mecanismos usados pelas bactérias para criar esses efeitos no corpo são variados. Através de estímulos nas terminações nervosas presentes no intestino, elas conseguem se comunicar com o cérebro e influenciar nosso humor e cognição, explica Lobo.
"As bactérias produzem moléculas capazes de estimular receptores que fazem conexão com o sistema nervoso central. Muitos desses microrganismos produzem moléculas equivalentes de neurotransmissores, como a serotonina", afirma o cientista.
Para Lobo, os novos estudos na área devem tentar entender quais são os mecanismos pelos quais as bactérias conseguem modular nossa saúde. Assim, os transplantes de fezes poderão se tornar uma solução para um leque de doenças, conforme o sugerido por pesquisas recentes.
"Mas ainda sabemos muito pouco sobre a microbiota e como ela afeta o sistema nervoso, por exemplo", diz o pesquisador. "Esses microrganismos dependem uns dos outros, são comunidades extremamente complexas. A solução pode estar na combinação de tipos de bactérias. Colocar uma peça só desse conjunto pode não ser suficiente para alterar a microbiota como um todo e trazer os benefícios", afirma.
Segundo ele, os transplantes de microbiota podem se tornar personalizados no futuro, com o conjunto de microrganismos necessário para cada pessoa sendo cultivado em intestinos artificiais de laboratório.
Por enquanto, os pesquisadores sugerem manter uma microbiota diversa, com a ingestão de fibras, que estimulam o crescimento da quantidade desses micróbios no intestino e permitem que eles produzam as moléculas benéficas. O uso de alimentos probióticos, como o kefir, também podem trazer benefícios, de acordo com Faria.
Antibióticos e outros produtos antimicrobianos devem ser usados somente quando necessário, diz Lobo. "Você realmente quer matar 99,9% dos seus microrganismos? Eles estão ali por uma razão", afirma o cientista.
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