Um mês após o Supremo Tribunal Federal (STF) ter declarado inconstitucional a regra que prevê abstinência sexual de 12 meses para "homens que se relacionam com homens" poderem doar sangue, hemocentros de todo o País ainda estão rejeitando esses doações. Um ofício, enviado em 14 de maio pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), reproduzido no portal do órgão e reforçado pelo Ministério da Saúde, orienta todos os laboratórios a não cumprirem a decisão até a "conclusão total" do caso, cujo acórdão ainda não foi publicado.
Integrantes do STF ouvidos reservadamente pelo Estadão, entretanto, afirmam que a decisão já é válida desde a publicação da ata do julgamento, em 22 de maio, conforme a jurisprudência da Corte. Assim, na visão desses membros do Supremo, os posicionamentos do Ministério da Saúde e da Anvisa configuram descumprimento de decisão judicial, com direito à denúncia em ouvidoria, no Ministério Público e até reclamação constitucional perante a própria Corte.
Documentos disponibilizados no site do STF mostram que tanto o Ministério da Saúde quanto a Anvisa já tinham sido notificados sobre a inconstitucionalidade das regras desde 18 de maio. O ofício chegou à pasta e à agência três dias após a demissão de Nelson Teich. Desde então, o ministério é comandado, de forma interina, pelo general Eduardo Pazuello.
Ao menos 10 hemocentros de todo o País confirmaram a orientação nacional, para os setores público e privado, para declararem como "inaptos" pelo período de 12 meses "homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes". Na prática, a decisão se estende também para homens gays, bissexuais e mulheres transexuais. O documento, disponível abaixo, ainda alerta para a possibilidade de eventual recurso a ser apresentado ao STF, mesmo que a ata do julgamento já tenha sido publicada.
Em ofício enviado aos hemocentros do País, Anvisa orienta laboratórios a considerarem "homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes" inaptos por 12 meses a doarem sangue Foto: Reprodução
"De acordo com a Constituição, os órgãos teriam um mês a partir da data de entrega do ofício para implementar as medidas necessárias e regulamentar a norma. Mas como essa medida não dependeria do Legislativo ou do Executivo, não haveria justificativa para a extensão desse prazo para implementar uma decisão do Judiciário", diz Hannetie Sato, especialista em Direito Cível e coordenadora do Comitê de Diversidade do Peixoto & Cury Advogados.
A pandemia do novo coronavírus ainda seria um agravante para a decisão. "Há esse ponto da própria dignidade humana. A Anvisa permanece inerte, deixando de regulamentar essa questão e estabelecer uma norma mesmo com os bancos de sangue necessitando de doações", observa Hannetie. Para ela, a situação ainda é passível de outra ação direta de inconstitucionalidade, agora por omissão. "Sem falar na responsabilização, porque eles têm ciência inequívoca da decisão dizendo que a norma é inconstitucional."
Aos 33 anos, Rodrigo Tadeu Leite afirma que nunca tentou fazer doação porque sabia da existência de "muitas restrições para a população LGBTQ". "Sempre quis doar, mas acabei não indo". No último dia 25, entretanto, uma semana após o ministério e a Anvisa terem sido notificados da inconstitucionalidade da regra de 12 meses, ele foi à Fundação Pró-Sangue, em São Paulo, acompanhado do irmão e da cunhada.
Chegando lá, passou pela entrevista de triagem e checou positivo para todas as respostas, mas foi orientado a voltar para fazer a doação apenas em fevereiro de 2021, um ano após sua última relação sexual, em janeiro deste ano. "Sempre tive uma vida sexualmente ativa, mas em relacionamentos fixos. Meu último namoro durou seis anos. Saí de lá extremamente frustrado", conta.
Além da frustração, o jovem formado em Administração também confessa que se sentiu constrangido e envergonhado após a orientação. "Vi que todo mundo me olhou torto, porque quando você sai daquela salinha, já é normalmente encaminhado para a doação. Eu me senti tão envergonhado, pensei que não quero doar nunca mais. Saí chorando e não acreditei que preciso passar por isso em pleno século 21."
O advogado Rafael Carneiro, do Carneiros e Dipp Advogados e representante do PSB na ação direta de inconstitucionalidade julgada pelo STF, afirma que o impedimento de esses voluntários doarem sangue pode motivar ações civis e até indenização por danos morais. "É algo ilegal, porque se baseia em uma norma inconstitucional. Houve uma ofensa à honra dos candidatos."
Em nota, o Instituto Pró-Sangue afirmou a proibição se dá de acordo com as portarias em vigência na Anvisa e no Ministério da Saúde. Ao Estadão, os dois órgãos reforçaram que só irão rever essas normas após a publicação do acórdão do julgamento.
Procurado pela reportagem, o STF informou que ainda não há previsão de data para que isso aconteça. O relator da ação, ministro Edson Fachin, não se manifestou.
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