Conteúdo verificado: em live no Facebook, o deputado bolsonarista Bibo Nunes destaca texto do japonês Satoshi Omura, Nobel de medicina, e afirma que a ivermectina é eficaz contra a covid-19.
São enganosas as afirmações feitas pelo deputado federal Bibo Nunes (PSL) em defesa do uso da ivermectina contra a covid-19 em uma live realizada no seu perfil no Facebook em 26 de abril. Ele apresenta o estudo “Global trends in clinical studies of ivermectin in Covid-19” (Tendências globais em estudos clínicos de ivermectina para Covid-19, em tradução livre), que tem entre os autores Satoshi Omura, vencedor do Prêmio Nobel de medicina em 2015 pela pesquisa que levou ao descobrimento do remédio.
O estudo tem falhas, como usar dados postados na plataforma ivmmeta.com, um site informal sem nenhum valor de publicação científica, como mostra essa checagem feita pelo Estadão Verifica. Além disso, os próprios autores afirmam que, embora os ensaios clínicos venham mostrando dados positivos, ainda não há estudos que expliquem esses resultados. Por isso mesmo, pedem uma cooperação internacional para acelerar as pesquisas sobre o uso da ivermectina em pacientes com covid-19.
Ao contrário do que afirma o deputado, não é verdade que “a ivermectina não tem efeito colateral; só faz bem”. Segundo a bula do medicamento produzido pela Vitamedic, sua ingestão pode causar “reações adversas leve e transitória”, que são “diarreia, náusea, falta de disposição, dor abdominal, falta de apetite, constipação e vômitos”. Ainda de acordo com a bula, “também podem ocorrer: tontura, sonolência, vertigem, tremor, coceira, lesão de pele até urticária, inchaço na face e periférico, diminuição da pressão arterial ao levantar-se e aumento da frequência cárdica”. Ainda há registros de hepatite medicamentosa por uso do chamado “kit Covid”, que inclui a ivermectina.
A própria Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) anunciou em comunicado que as “indicações aprovadas para a ivermectina são aquelas constantes da bula” – ou seja, não incluem o combate ao coronavírus. E, em 16 de maio de 2021, a Folha divulgou informações sobre o documento “Diretrizes Brasileiras para Tratamento Hospitalar do Paciente com Covid-19”, que foi elaborado pelo Ministério da Saúde após revisão de estudos com especialistas e que não recomenda o uso de ivermectina, cloroquina e azitromicina, entre outros medicamentos para tratamento de pacientes hospitalizados com covid-19.
O Comprova tentou contatar Bibo Nunes, mas não obteve retorno até a publicação deste texto.
Após assistir ao vídeo, o Comprova buscou o estudo citado pelo deputado e analisou o conteúdo do material. Também encontrou a checagem feita pelo Estadão Verifica, que serviu de apoio ao trabalho.
Por telefone, a equipe entrevistou Vinícius Medina Kern, professor de Ciência da Informação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Além disso, o Comprova pesquisou comunicados de entidades de saúde em relação ao uso da ivermectina no combate à covid.
A equipe ainda tentou contatar a empresa Vitamedic. Por telefone, um funcionário disse que havia recebido o e-mail da reportagem, mas, mesmo após pedidos de retornos, não houve resposta. A equipe também enviou e-mail e mensagens via Facebook para Bibo Nunes e ligou no escritório do deputado. Uma funcionária passou o número do “responsável pelo escritório”. Por WhatsApp, ele respondeu: “Assim que possível repasso ao deputado para ver se ele tem interesse em responder! Vou tentar te dar um retorno o mais breve possível!”. Às 10h30 do dia 19 de maio, o Comprova perguntou se ele iria responder e não recebeu resposta até a publicação desta checagem.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 19 de maio de 2021.
O artigo usado pelo deputado Bibo Nunes em sua live no Facebook tem 52 páginas, foi revisado e aceito para publicação no dia 10 de março de 2021 pelo The Japanese Journal of Antibiotics e é assinado por Satoshi Omura, vencedor do Prêmio Nobel de medicina de 2015, e também por Morimasa Yagisawa, Hideaki Hanaki e Patrick J. Foster. Yagisawa é, junto com Foster e Omura, membro do Instituto Memorial Satoshi Omura, da Universidade Kitasato, no Japão. Yagisawa e Foster são professores da Faculdade de Farmácia da Universidade Keio, no mesmo país.
Diferente do que diz o deputado, o artigo não prova que a ivermectina é eficaz contra a covid-19, nem que previne a doença. Na publicação, os autores fazem um apanhado geral da situação do uso de drogas para tratamento da covid-19 e afirmam que medicamentos como hidroxicloroquina, cloroquina, a combinação de lopinavir e ritonavir e o interferon tiveram eficácia limitada ou nula no tratamento da covid-19.
Sobre outras drogas, como o Remdesivir, falam de limitações, como a melhoria de 30% na recuperação de pacientes críticos, mas o fato de não ser indicado para casos leves e moderados. O argumento utilizado pelos pesquisadores, antes de falarem sobre a ivermectina, é de que não há remédios para pacientes em casos leves e que, por isso, um método de tratamento eficaz ainda está sendo procurado.
A ivermectina surge no artigo no momento em que os pesquisadores citam um grupo australiano, que teria registrado que o medicamento suprimiu a replicação do SARS-CoV-2 em um experimento in vitro, ou seja, em laboratório. Em seguida, eles falam sobre o histórico do uso de ivermectina desde 1987 para tratamento de oncocercose e filariose linfática – ambas doenças tropicais –, bem como no tratamento da escabiose em humanos.
A partir daí, eles fazem uma ampla defesa da ivermectina para pacientes com covid-19, mas utilizam relatos de ensaios clínicos listados na plataforma ivmmeta.com, um site informal sem valor de publicação científica, com análises enviesadas sobre o medicamento, como mostrado nesta verificação, feita em março, pelo Estadão Verifica. Eles argumentam que os ensaios clínicos começaram a ser publicados por pesquisadores de diversos países no site Clinical Trials.gov (dos Estados Unidos) e na OMS, na área dedicada aos ensaios.
O discurso dos pesquisadores é de que esses ensaios clínicos, com cerca de 15 mil pacientes, têm apresentado resultados positivos para a ivermectina tanto no tratamento quanto na prevenção de casos de covid-19 e que a probabilidade de que os resultados desses ensaios sejam um erro é “tão baixa quanto 1 em 4 trilhões”.
Eles não deixam de apontar que os resultados encontrados levam em conta altas doses do medicamento, mas mencionam que há relatos de que, na prática médica real, existem respostas eficazes com o uso de doses consideradas normais. Por isso, seria necessário definir qual a sensibilidade do SARS-CoV-2 às doses de ivermectina.
Nas considerações finais, os autores afirmam que, embora os ensaios clínicos venham mostrando eficácia da ivermectina, ainda não há achados que expliquem razoavelmente esses resultados. Por isso, eles dizem que vêm buscando o máximo de apoio possível para acelerar as pesquisas sobre o uso da ivermectina em pacientes com covid-19.
Professor de Ciência da Informação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Vinícius Medina Kern observa que o fato de um dos autores ter sido laureado com um Nobel não significa que o estudo não possa ser contestado, particularmente se considerar que Satoshi Omura recebeu o prêmio justamente pelas pesquisas que o levaram à descoberta da ivermectina. Nesse contexto, inclusive, estaria numa condição de conflito de interesses. Artigos científicos costumam mencionar os possíveis conflitos de interesse. O artigo em questão, no entanto, diz que não há conflitos de interesse a declarar.
Vinícius Kern, cuja atuação tem foco em avaliação da ciência, ressalta que apenas a publicação do estudo não sustenta uma licença para o uso da ivermectina contra a covid-19.
Para validar as informações deste ou qualquer outro estudo, explica Vinicius Kern, é preciso haver consenso científico a partir, por exemplo, de revisões sistemáticas na literatura sobre o tema que, neste caso, é a indicação de ivermectina para prevenir a infecção pelo coronavírus ou tratar pacientes já contaminados. Outra metodologia é a meta-análise, que faz uma avaliação estatística de resultados de vários estudos individuais para se obter uma conclusão geral.
O professor buscou referências na PubMed, uma base de dados com resultados de pesquisas médicas, mas encontrou apenas cinco estudos que citam a ivermectina e nenhum, até o momento, tem evidência forte de que a medicação funcione para a covid-19.
Em artigo publicado no Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a farmacêutica e doutora em Genética e Biologia Molecular Tatyana Tavella também aponta que o rigor científico é indispensável para que um estudo seja legitimado, isto é, há critérios que precisam ser observados durante a análise. No texto, ela cita a ivermectina e frisa que não existe tratamento precoce para a covid-19.
O Estadão fez a checagem de um vídeo com o mesmo teor e, segundo especialistas consultados, o artigo de Satoshi Omura não é relevante cientificamente para atestar a eficácia da ivermectina.
Em 4 de fevereiro deste ano, a norte-americana Merck, que fabrica a ivermectina (mas não vende no Brasil), anunciou em um comunicado que não “há base científica para potencial efeito terapêutico do medicamento contra a covid-19 a partir de estudos pré-clínicos”. O texto afirma ainda que não existe “evidência significativa para atividade clínica ou eficácia clínica em pacientes com covid-19” e conclui que a empresa não acredita que haja dados que sustentem a segurança e eficácia da ivermectina além das doses e populações indicadas na bula.
Um dia depois, a Vitamedic, que fabrica ivermectina em Anápolis, em Goiás, divulgou que está com a produção em ritmo acelerado porque “é um medicamento que está sendo testado em várias partes do mundo com uma grande expectativa que ela reduza a carga viral do coronavírus impedindo que a infecção causada por ele se desenvolva para quadros graves”.
Segundo a bula do medicamento da Vitamedic, a ivermectina é indicada para “o tratamento de várias condições causadas por vermes ou parasitas” e funciona no tratamento de infecções como “estrongiloidíase intestinal, oncocercose, filariose (elefantíase), ascaridíase (lombriga), escabiose (sarna) e pediculose (piolho)”. Ou seja, não há nenhuma referência ao coronavírus.
Ainda segundo a bula, no campo “interações medicamentosas” é explicado que “não há relatos sobre interações medicamentosas com a ivermectina; no entanto, deve ser administrada com cautela a pacientes em uso de medicamentos que deprimem o Sistema Nervoso Central, como medicamentos para o tratamento de insônia, ansiedade, alguns analgésicos ou mesmo bebidas alcoólicas. Informe ao seu médico ou cirurgião-dentista se você está fazendo uso de algum outro medicamento. Não use medicamento sem o conhecimento do seu médico. Pode ser perigoso para a sua saúde”.
O penúltimo item da bula é a pergunta “Quais os males que este medicamento pode me causar?”. A resposta, diferentemente do que afirma Bibo Nunes no vídeo quando diz que a ivermectina “só faz bem”, é: “as reações adversas são leves e transitórias: diarreia, náusea, falta de disposição, dor abdominal, falta de apetite, constipação e vômitos. Também podem ocorrer: tontura, sonolência, vertigem, tremor, coceira, lesão de pele até urticária. Inchaço na face e periférico, diminuição da pressão arterial ao levantar-se e aumento da frequência cárdica”.
A posição mais recente da Organização Mundial de Saúde (OMS) é de 31 de março de 2021, portanto 21 dias após a revisão e publicação do artigo de Satoshi Omura sobre o assunto. Segundo o órgão, a recomendação ainda é de que a ivermectina seja usada para tratar a covid-19 apenas em ensaios clínicos.
“Até que mais dados estejam disponíveis, a OMS recomenda que o medicamento seja usado apenas em ensaios clínicos”, diz a organização, em nota. A recomendação, agora, faz parte das diretrizes para tratamentos de pacientes com covid-19, atualizadas periodicamente, e se aplica àqueles em qualquer gravidade e com qualquer duração de sintomas.
Posicionamento semelhante teve a Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês), que, em 22 de março, divulgou um comunicado em que conclui que os dados disponíveis não apoiam o uso do medicamento para covid “fora de ensaios clínicos bem planejados”. O documento afirma ainda que “os medicamentos com ivermectina não estão autorizados para uso na Covid-19 na União Europeia, e a EMA não recebeu nenhum pedido para tal uso”.
Ainda antes disso, em 5 de março, a FDA, órgão de saúde dos Estados Unidos, publicou em seu site o texto “Por que você não deve usar a ivermectina para tratar ou prevenir a Covid-19”. No documento, a entidade afirma que o medicamento é usado nos Estados Unidos para tratar ou prevenir parasitas em animais e que “tem recebido inúmeros relatos de pacientes que solicitaram ajuda médica e foram hospitalizadas após se auto medicarem com ivermectina destinada a cavalos”.
No Brasil, a ivermectina foi um dos medicamentos sem eficácia comprovada defendidos pelo governo de Jair Bolsonaro (sem partido), ao lado da cloroquina e da azitromicina, entre outros.
Em julho do ano passado, a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) anunciou em comunicado que “é preciso deixar claro que não existem estudos conclusivos que comprovem o uso desse medicamento para o tratamento da Covid-19, bem como não existem estudos que refutem esse uso” e que as “indicações aprovadas para a ivermectina são aquelas constantes da bula do medicamento” – ou seja, não é indicada contra a covid.
Embora tenha sido defendida pelo governo, entidades da área da saúde são contra o uso do remédio para conter a pandemia. A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e a Associação Médica Brasileira (AMB) afirmaram em 19 de janeiro que “as melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no tratamento precoce para a covid-19 até o presente momento”.
Além disso, em 16 de maio deste ano, um parecer do Ministério da Saúde contraindica a prescrição da ivermectina, entre outras drogas, para pacientes hospitalizados com Covid, como a Folha informou em 16 de maio. Foi a primeira vez que a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) avaliou o uso desses medicamentos contra o coronavírus.
O Comprova verifica conteúdos possivelmente falsos ou enganosos, divulgados em redes sociais, sobre a pandemia e que tenham alcançado alto grau de viralização.
O vídeo investigado teve mais de 364 mil visualizações, 32 mil interações e 7,2 mil comentários até a tarde do dia 19 de maio de 2021. Conteúdos suspeitos sobre medicamentos sem eficácia comprovada colocam a população em risco, pois podem dar a entender que basta tomar o remédio para estar imune ao coronavírus, o que é mentira. É importante que todos saibam que é preciso seguir as medidas realmente eficazes na redução dos casos de covid-19, como a vacinação, o uso de máscaras e álcool em gel, a lavagem das mãos e o distanciamento social.
Nesta fase, o Comprova já investigou outros conteúdos suspeitos relacionados à ivermectina e ao chamado “tratamento precoce”, com uso de substâncias que não têm eficácia comprovada contra a covid-19. No mês passado, matéria destacava que a OMS não indica o uso de ivermectina, após uma publicação no Facebook sugerir que a organização recomendava o remédio. Outra reportagem indicava ser falsa a alegação de que 52 municípios zeraram as mortes provocadas pelo coronavírus devido ao uso de remédios do “tratamento precoce.”
Em 7 de maio, o Estadão Verifica também analisou um conteúdo semelhante, que usava o mesmo estudo de pesquisadores japoneses para defender a ivermectina.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro de modo que seu significado sofra alterações.
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