Passados três meses desde que o primeiro caso de coronavírus foi confirmado no Brasil, o Ministério da Saúde ainda sofre entraves para ampliar a testagem de casos e entregar parte dos itens prometidos para ampliar a rede de assistência.
Os impasses ocorrem em meio a trocas sucessivas de gestão. De abril até agora, o Ministério da Saúde teve dois titulares, que deixaram o governo por discordâncias com o presidente Jair Bolsonaro, e está atualmente sob comando interino de um general.
A pandemia também levou a cenários como o da dificuldade para encontrar fornecedores e insumos, cancelamento de contratos diante da concorrência com outros países e até mesmo disputas judiciais por equipamentos.
Em paralelo, governos dos estados reclamam da falta de uma política única de enfrentamento e apontam impactos.
"Desde o início do processo o ministério anunciou medidas como alocação de respiradores e colocação de EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) à disposição dos estados. Essas iniciativas todas se frustraram e isso teve um impacto muito forte nas gestões estaduais", afirma Alberto Beltrame, secretário de Saúde do Pará e presidente do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde).
Uma das principais dificuldades está na oferta de testes, necessária para identificação e controle de casos da Covid-19 no país. Entre fevereiro e abril, a previsão de oferta foi pouco a pouco ampliada - de 1 milhão para 2,3 milhões, depois 10 milhões, 23 milhões e 46,2 milhões.
Até agora, porém, apenas 10 milhões de testes foram distribuídos, valor abaixo do previsto em cronogramas do programa Diagnosticar para Cuidar, que citavam ao menos 17 milhões até o fim de maio.
O ministério também chegou a anunciar a instalação de um centro de diagnóstico emergencial em parceria com a rede privada e de postos de coleta de amostras em cidades com mais de 500 mil habitantes, mas as medidas ainda não têm prazo.
Ações prometidas para a organização e ampliação da rede de assistência também sofrem atrasos, como a oferta de respiradores a pacientes em estado grave nas UTIs.
Em abril, o Ministério da Saúde chegou a fechar um contrato para importar 15 mil respiradores, mas a compra foi cancelada devido a falta de garantia de entrega.
A solução foi fechar uma parceria para obter 14.100 respiradores via produção nacional. Até agora, no entanto, só 1.612 foram entregues, número abaixo dos cerca de 7.000 previstos para o último mês.
Representantes das indústrias ouvidos pela Folha alegam dificuldade em importar peças e disputas judiciais entre governo, estados e municípios para oferta dos produtos.
O entrave na obtenção de respiradores também fez naufragar outra proposta do ministério: o aluguel emergencial de até 3.000 leitos temporários de UTI para estados mais afetados pela pandemia.
A iniciativa foi uma das primeiras anunciadas em meio à crise, mas só 540 foram contratados -outros dois editais não tiveram interessados.
Por outro lado, houve aumento na habilitação de leitos, processo em que o ministério passa a financiar parte dos custos de estruturas criadas para atendimento em estados e municípios. Até o momento, ao menos 6.142 leitos foram habilitados.
Secretários, porém, reclamam de atrasos no processo com as seguidas trocas de gestão e pedem que seja mantida a velocidade de habilitações.
"Uma vez que não se cumprem esses compromissos do ministério relativos a respiradores, monitores e leitos de UTI, estados tiveram que buscar por conta própria alternativas e foram jogados a um mercado perverso", diz Alberto Beltrame, que lembra que a concorrência impactou nos preços e que vários estados tiveram problema na entrega de produtos.
Para Wilames Bezerra, presidente do Conasems, conselho que representa secretários municipais de saúde, as constantes trocas de gestão geraram atraso em medidas que poderiam ser resolvidas.
"A instabilidade de gestão do governo federal cria uma dificuldade na ponta", diz, citando como exemplo o atraso no lançamento de regras e financiamento de leitos para hospitais de campanha -o que só ocorreu na última semana.
"Precisamos de uma política mais definida no enfrentamento da pandemia. Muitas das coisas que acontecem agora deveriam estar acontecendo há 60 ou 90 dias."
Enquanto isso, o avanço da doença ao interior alerta para a necessidade de novas ações.
Embora o ministério não aponte quando será o pico, alguns especialistas sugerem que a epidemia poderá seguir em alta até julho, com casos também nos meses seguintes.
"Vale a pena chamar atenção que continua a inexistência de um plano de enfrentamento nacional, articulado com estados e municípios. A gente assistiu a um entra e sai de ministros", afirma Gulnar Azevedo, presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, que assumiu o planejamento inicial de preparação do país para a chegada do novo coronavírus, atribui parte das dificuldades na entrega dos itens devido à disputa mundial pelos produtos.
"Era um momento com EUA, Europa, África, todos tentando comprar e países bloqueando exportações", diz.
Outra dificuldade, segundo Mandetta, foi a mudança de quadro a partir da entrada do vírus na Itália, o que revelou outro comportamento da epidemia e afetou parte do planejamento traçado em janeiro.
As informações iniciais da China apontavam para um vírus "mais pesado" e "lento", diferente do que se viu depois em outros países, aponta.
Para Mandetta, apesar das dificuldades, a solução para a compra de respiradores ajudou a segurar parte da demanda. "Foi um trabalho dificílimo. Mas é o que está segurando a onda."
Ele diz ter deixado a gestão com a compra de EPIs já entregues e previsão de novas aquisições, mas diz não saber se as medidas foram à frente.
A Folha de S.Paulo procurou o ex-ministro Nelson Teich, mas não recebeu resposta.
Em nota, o Ministério da Saúde informa que "segue em constante esforço para ampliar a aquisição e a distribuição de EPIs, testes, respiradores, habilitação de leitos, medicamentos e contratação de profissionais de saúde".
Questionada, a pasta atribui a menor oferta de testes até aqui devido a dificuldades junto a fornecedores, mas mantém a previsão de 46 milhões.
Afirma ainda que as entregas estão sendo feitas semanalmente, segundo a necessidade de estados e municípios.
De acordo com o ministério, um edital para locação de 2.000 leitos extras terminou em 30 de abril sem interessados e novos processos devem ser realizados. Diz ainda ter investido R$ 882 milhões na habilitação de leitos, com outros pedidos em análise.
Sobre respiradores, o ministério afirma que a distribuição tem ocorrido conforme a capacidade de produção da indústria nacional, que depende de peças importadas, e que a responsabilidade pela aquisição desses aparelhos e de EPIs é de estados e municípios, mas que tem dado apoio na compra dos mesmos.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta