A vacina Coronavac não foi a única a enfrentar problemas na divulgação de seus dados no Brasil. Falhas na comunicação também causaram confusão sobre o outro imunizante que deve começar a ser aplicado no país na próxima semana, o desenvolvido pela Universidade de Oxford com a farmacêutica AstraZeneca, apesar de os dois produtos serem eficientes e seguros.
Desde o primeiro anúncio internacional, em novembro, a AstraZeneca foi criticada por cientistas e profissionais da área. Começou com um comunicado à imprensa que citava três eficácias diferentes para o imunizante (todas acima dos 50% considerados necessários).
A eficácia de 90% se refere a um grupo do estudo que tomou meia dose e depois uma dose inteira. A de 62%, a outro grupo maior que tomou duas doses inteiras. E, por fim, o índice de 70% corresponde à soma dos dois grupos.
O fato desse primeiro grupo ter recebido meia dose levantou dúvidas entre especialistas, já que a prática é incomum nesse tipo de estudo, e levou a empresa a admitir que ocorreu um erro na dosagem. Até hoje não ficou claro por que quem tomou a dose menor teve um resultado melhor.
Na época também foi apontada uma série de outras lacunas no comunicado inicial, como a ausência do número absoluto de casos de Covid-19 nos diferentes grupos e o porquê da junção dos resultados de ensaios clínicos diferentes, do Reino Unido e do Brasil.
As ações da empresa caíram, e executivos tiveram que fazer teleconferências para se explicar a analistas de Wall Street, gerando questionamentos sobre o não compartilhamento dessas informações com o público. O estudo completo foi publicado depois em dezembro na revista científica "The Lancet".
"A vacina de Oxford gerou muita dúvida, também teve erro de comunicação, o paper é confuso. Por isso ainda não houve aprovação pela FDA [agência dos EUA]", diz a médica epidemiologista Denise Garrett, que trabalhou no Centro de Controle e Prevenção de Doenças norte-americano.
O imunizante já foi aprovado em sete países (Reino Unido, Índia, México, Marrocos, Argentina, Equador e El Salvador). Por aqui, está sendo analisado junto com a Coronavac pela Anvisa, que tem cobrado mais dados tanto da Fiocruz como do Instituto Butantan e no domingo (17) deve decidir se libera ou não os dois produtos.
No mesmo dia, devem chegar da Índia as primeiras 2 milhões de doses da vacina a serem distribuídas no Brasil. Depois, a Fiocruz aguardará os insumos da China para começar a produção interna, de 100 milhões de doses até julho. No segundo semestre, a tecnologia será importada e serão feitas mais 110 milhões.
Enquanto isso, o público leigo brasileiro continua sem explicações. Até hoje nenhum dos órgãos responsáveis pelos estudos ou produção do imunizante no país fez anúncios públicos ou esclareceu os dados técnicos formalmente como fizeram o Butantan e o governo paulista, ainda que sob muitas críticas.
O instituto e o governador João Doria (PSDB), que trava batalha política com o presidente Jair Bolsonaro, adiaram duas vezes o anúncio e divulgaram resultados parciais na última semana, que geraram dúvidas. Tiveram que desfazer a confusão convocando uma entrevista coletiva com cientistas renomados na terça (12).
No caso da vacina de Oxford, a Fiocruz diz que não participa diretamente dos estudos clínicos, conduzidos pela AstraZeneca e coordenados no Brasil pela Unifesp. Por isso, "tem divulgado as informações já publicadas em revista científica e amplamente divulgadas pelos produtores e coordenadores dos estudos".
Já a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) afirma que o Brasil é apenas um braço do estudo global e "toda e qualquer divulgação de dados deve ser feita pela Universidade de Oxford em parceria com a AstraZeneca".
Questionada, a sede da farmacêutica no Brasil informou que disponibilizou o protocolo detalhado e o desenho do ensaio clínico em seu site, além de ter feito o anúncio global em novembro e de ter publicado os dados na revista científica Lancet.
"As boas práticas clínicas e os padrões regulatórios determinam que as informações que compartilhamos sejam rigorosamente controladas para não influenciar indevidamente ou distorcer os estudos clínicos", disse em nota.
Recentemente, a Fiocruz tem citado em comunicados uma eficácia da vacina de 73% após a primeira dose e de 100% em evitar hospitalizações, mas, questionadas, nem a fundação nem a Unifesp souberam detalhar os dados. A AstraZeneca respondeu que esse foi o resultado de uma análise complementar, considerando um período de 22 dias a 12 semanas após a primeira dose.
Para profissionais da área, a falta de informações claras em um momento de politização e negacionismo da ciência pode atrapalhar a vacinação no país, que depende da adesão das pessoas.
"A transparência é essencial, senão vai haver muita insegurança e dúvida. Lógico que a população não precisa de todos os detalhes, mas o básico é a segurança e o nível de proteção, que têm que ser comunicados com clareza", diz Denise Garrett.
Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, lembra que, com a pandemia, dados sobre vacinas passaram a pautar as decisões dos cidadãos. "Não existe mais a escolha entre explicar ou não. A gente precisa explicar, e de uma maneira que a população entenda, sem esconder as incertezas", diz.
Ela afirma que, no caso do imunizante de Oxford, "houve uma falha grande de divulgação que até hoje não foi resolvida". "É uma vacina prioritária no Brasil, junto com a Coronavac, então seria muito esclarecedor se a Fiocruz, sendo a responsável por trazê-la e produzi-la, explicasse os dados."
Para Hillegonda Maria Novaes, coordenadora do Núcleo de Vigilância Epidemiológica do Hospital das Clínicas da USP, também houve falta de transparência, mas isso é um problema geral.
"Fica parecendo que é só a Fiocruz e o Butantan não são transparentes, mas os outros também não são. Se você olhar os dados, como é feito, como foram as divulgações, todas as grandes empresas têm problemas. Sempre há interesses, implicações, significados", afirma.
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