Dois novos estudos publicados em uma das principais revistas científicas do mundo, a Science, indicam que pelo menos 1 em cada 10 pessoas que desenvolveram quadros graves de Covid-19 pode ter sido atacada pelo próprio sistema imunológico.
O quadro é mais frequente entre os homens: 12,5% dos que desenvolveram casos agudos do novo coronavírus tiveram a condição agravada pelo próprio sistema de defesa, ante 2,6% das mulheres.
De acordo com os pesquisadores, os resultados ajudam a explicar por que pessoas sem comorbidades conhecidas que contraíram a Covid-19 morreram.
Em contato com um vírus, o corpo produz substâncias chamadas interferon tipo 1 (proteína). Essa proteína é responsável por impedir que o vírus se reproduza nas células e por estimular as demais células a combater o invasor. Essa fase inicial de ação ativa a resposta imune com produção de anticorpos.
O primeiro estudo analisou amostras de plasma e soro de 987 pessoas com Covid-19 agravada, 663 assintomáticos ou pré-assintomáticos e 1.127 pessoas saudáveis (que integraram o grupo controle).
Os pesquisadores descobriram que em 10% dos casos o corpo dos pacientes tinha anticorpos que agiam contra os seus próprios interferons tipo 1. Ou seja: o próprio sistema de defesa do organismo impedia que o corpo combatesse o Sars-CoV-2, tendo como consequência o agravamento da doença, e, em parte dos casos, a morte.
Carolina Prando, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Genética do Sistema Imune do Instituto de Pesquisa Pelé Pequeno Príncipe e coautora dos estudos, explica que há dois tipos de interferons tipo 1, o alfa e o beta. O interferon alfa foi o mais atacado pelo sistema imunológico dos pacientes testados.
"O anticorpo funciona como se fosse uma doença autoimune para bloquear o interferon [alfa]. Portanto, não adianta dar interferon [alfa] para os pacientes. Existem tratamentos para outras doenças, por exemplo, que são feitos com interferon beta. É preciso realizar ensaios clínicos para saber se suplementar o interferon beta pode trazer benefício para o tratamento da Covid-19", disse.
Com a nova descoberta é possível, ainda, prever quais pacientes correm maior risco de morrer.
As descobertas podem ainda auxiliar pesquisas sobre o tratamento com plasma convalescente, processo em que se aplicam em um paciente anticorpos obtidos do plasma de quem já teve a doença e se recuperou.
Também podem refrear a introdução de anticorpos em pacientes que façam parte dos 10% afetados pelo ataque autoimune, já que isso faria a doença se agravar em vez de melhorar, pois os anticorpos combateriam o próprio organismo e não o vírus.
As conclusões são complementadas pelo outro estudo publicado, segundo o qual 3,5% dos pacientes com quadro clínico grave da Covid-19 apresentaram mutações genéticas que impedem o organismo de produzir anticorpos contra o vírus. Nesse estudo foi analisado o material genético de 659 pessoas no estado grave da doença.
Prando frisa que apenas novos ensaios clínicos vão revelar se a mutação torna esses pacientes suscetíveis a reinfecção na forma grave. "Não podemos descartar essa possibilidade. O interferon é necessário para que haja anticorpos. Por esta ser uma mutação genética, pode ser hereditário e, portanto, é importante investigar se outros familiares de um doente em estado grave correm maior risco."
Nesses casos, diz ela, seria possível estimular o sistema imunológico com a administração de interferon tipo 1, de forma similar ao que ocorre no tratamento da hepatite.
Com a publicação dos estudos, o grupo se prepara para dar início aos ensaios clínicos que verificarão as possíveis intervenções terapêuticas para contornar os resultados divulgados.
Ambos os estudos foram realizados pelo COVID Human Genetic Effort, projeto de colaboração entre mais de 50 centros de sequenciamento genético e centenas de hospitais pelo mundo. Prando e outro brasileiro, o pesquisador Antonio Condino Neto, da Universidade de São Paulo (USP), integram a diretoria do projeto.
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