A delegação brasileira chega à COP-26 com um esqueleto no armário a explicar: por que enfraqueceu suas metas de redução de emissão de carbono pelo Acordo de Paris (2015), quando o compromisso de todos os países é vitaminá-las.
Só que esse cadáver, ao menos, não é culpa só de Jair Bolsonaro (sem partido): Dilma Rousseff (PT) deu início ao estratagema, e Michel Temer (MDB) o continuou. A manobra é suprapartidária.
Graças a ela, o Brasil pode seguir elevando suas emissões, apesar do objetivo nominal de reduzi-las em 37% até 2025 e 43% até 2030. Só em 2020 o desmatamento implicou aumento de 9,5% na produção de gases do efeito estufa, segundo o consórcio de ONGs Sistema de Estimativas de Emissões de Gases do Efeito Estufa (Seeg).
A redução se calcula sobre a poluição climática do ano-base 2005. Mas a conta sobre as emissões daquele ano, a linha de base, mudou. Mais de uma vez.
Até abril de 2016, mês anterior ao impeachment da presidente, elas eram oficialmente de 2,1 bilhões de toneladas equivalentes de dióxido de carbono (GtCO2e), quando então foram revistas para 2,8 GtCO2e.
A alteração da base de cálculo em 2016 criava uma folga contábil de 400 milhões de toneladas para o Brasil cumprir até 2030. Isso representa metade do que emite num ano a Arábia Saudita, potência dos combustíveis fósseis.
Em 2020, já sob Bolsonaro, a conta de emissões de 2005 mudou de novo, para 2,4 GtCO2e. O bônus para a meta nacional assumida no Acordo de Paris encolheu então para 200 milhões de toneladas.
Na origem da sanfona estão limitações metodológicas nos primeiros inventários nacionais de gases do efeito estufa. Não havia bons mapas de densidade de biomassa no bioma mata atlântica, por exemplo.
À medida que novos dados e imagens de satélites iam surgindo e sendo incorporados à metodologia, os inventários foram progressivamente aperfeiçoados, como aliás autorizado pela ONU. Todos os países, Brasil incluído, estavam aprendendo a montar inventários de carbono.
A primeira e maior diferença de cálculo foi oficializada no terceiro inventário nacional, publicado em abril de 2016, quatro meses depois de Paris. No entanto, como a Folha apurou, ao chegar à capital francesa a delegação brasileira chefiada pela ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira já tinha conhecimento dos números modificados.
O terceiro relatório, produzido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, estava pronto. O governo federal, porém, não se decidia pela publicação. Não cairia bem, no momento em que o país se preparava para as negociações de Paris, na mais importante cúpula sobre a crise climática em muitos anos.
O Brasil está de novo em situação parecida, ainda que a correção de 2020 tenha diminuído o tamanho da pedalada climática. Só que, desta vez, a reputação internacional do país está destruída por força da agenda anti-ambiental de Bolsonaro e pelo aumento da destruição na Amazônia e no cerrado.
Em Glasgow, o presidente seria cobrado por isso, se não tivesse fugido da cúpula. Aqui mesmo está sendo acionado na Justiça por manter o artifício escritural que atenua a meta nacional em favor do clima, quando se espera do Brasil que a fortaleça.
Para preservar a credibilidade na mesa de negociação, seria mais produtivo o governo elevar os percentuais de redução de emissões, de modo a não enfraquecer o compromisso em termos absolutos (milhões de toneladas de CO2). Eles teriam de subir para 46% e 51%, respectivamente em 2025 e 2030, em lugar de 37% e 43%, para que o total de emissões fosse o mesmo anunciado em 2016.
Outra possibilidade seria abandonar o marco numérico de 2005, pois muita coisa aconteceu desde então. O desmatamento na Amazônia caiu de 19 mil km² naquele ano para 4.500 km² em 2012, com Lula e Dilma; com Bolsonaro, voltou ao patamar de mais de 10 mil km² anuais. A destruição do cerrado segue firme.
O correto, se houvesse compromisso real com o objetivo de conter o aquecimento da atmosfera em 1,5ºC, seria considerar a trajetória das emissões nacionais nas últimas décadas, fixar uma meta ambiciosa para a próxima que seja compatível com o Acordo de Paris e traçar uma rota detalhada para alcançá-la.
Mas o que fez o atual governo? Manteve percentuais adotados por Dilma com base em cifras variáveis de emissão, antecipou de 2060 para 2050 a neutralidade de carbono, transferindo a responsabilidade para futuros presidentes, e a poucos dias da COP-26 anunciou um programa Crescimento Verde que nada especifica sobre como pretende chegar lá.
A pedalada climática começou com Dilma, verdade, mas com Bolsonaro ela passou de manobra negocial, em Paris, para verdadeiro estelionato planetário, em Glasgow.
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