BRASÍLIA, DF - Jair Bolsonaro (PL) e o então chefe da Receita Federal Julio Cesar Vieira Gomes conversaram por telefone em dezembro sobre a liberação das joias presenteadas pela Arábia Saudita e apreendidas na alfândega do aeroporto de Guarulhos (SP).
Pessoas com conhecimento do episódio confirmaram à reportagem a ocorrência da ligação, o que representa o primeiro indicativo de participação direta do então presidente da República na tentativa de liberação do material avaliado em R$ 16,5 milhões.
Há divergência apenas sobre de quem teria partido a ligação, se de Bolsonaro para Julio Cesar ou o contrário.
Essa conversa entre eles contradiz a versão que o ex-presidente apresentou durante evento no final de semana nos Estados Unidos, quando tentou se desvincular do caso, dizendo não ter ficado sabendo dos presentes barrados na alfândega e negando tentativa de trazê-los de forma ilegal.
Uma das versões da conversa é a de que o então secretário da Receita Federal ligou para Bolsonaro e o informou da existência das joias apreendidas na alfândega de Guarulhos.
A partir daí, o ex-ajudante de ordens e homem de confiança de Bolsonaro, coronel Mauro Cid, teria sido destacado para acertar com Julio Cesar os trâmites burocráticos para o desembaraço do material.
Por essa versão, Bolsonaro não teria conhecimento da existência das joias até a ligação do secretário da Receita.
A outra versão para o caso também confirma a ligação telefônica entre os dois, mas afirma que foi Bolsonaro quem ligou para Julio Cesar, dias depois de Mauro Cid ter feito um telefonema inicial pedindo uma apuração sobre a existência de joias apreendidas pela Receita.
As duas versões são coincidentes no sentido de que o tema da conversa entre presidente da República e chefe da Receita foi no sentido de liberar as joias para posterior entrega ao Palácio do Planalto.
Procurados, Mauro Cid e Julio Cesar não quiseram se manifestar. A reportagem não conseguiu falar com a defesa de Bolsonaro.
A apreensão de joias vindas da Arábia Saudita na Receita Federal foi revelada pelo jornal O Estado de S. Paulo na última sexta-feira (3). A existência de um segundo conjunto de joias e sua ida ao acervo privado de Bolsonaro foi revelada pela Folha de S.Paulo no domingo (5).
Documentos e relatos confirmam que, no final de dezembro, houve uma mobilização na Presidência e na Receita na tentativa de liberação do material apreendido pela Receita.
Nos dias 27 e 28 foi preparado o ofício encaminhado para a Receita em que Cid solicita a liberação das joias e um email da chefia da Receita para a superintendência do órgão em São Paulo, também no sentido da liberação do material.
O ofício de Cid enfraquece a versão de que Bolsonaro soube apenas em dezembro da existência das joias uma vez que o coronel cita no documento que "foram meses para obter os documentos comprobatórios, tal como exigido pela Nota da Receita Federal," para conseguir a liberação.
A operação da cúpula do Executivo culminou com o envio a Guarulhos em 29 de dezembro — a dois dias do final da gestão Bolsonaro — do sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva, em avião da Força Aérea Brasileira. Ele não conseguiu retirar o material.
Funcionários da Receita Federal em São Paulo, especialmente na alfândega do aeroporto, resistiram às tentativas de liberação das joias sob o argumento de que não havia comprovação de que o material seria destinado ao patrimônio público, entre outras irregularidades formais.
O caso teve início de outubro de 2021, quando uma comitiva chefiada pelo então ministro de Minas e Energia Bento Albuquerque voltou de viagem oficial à Arábia Saudita. O militar Marcos André dos Santos Soeiro tentou entrar no país com as joias em sua bagagem pessoal, sem declaração à alfândega. Acabou parado no aeroporto de Guarulhos, e o material foi apreendido.
A Receita afirma ter orientado o governo sobre como desembaraçar o material, que poderia ser liberado sem pagamento de tributo caso fosse destinado ao patrimônio público, mas que isso nunca ocorreu.
Documentos posteriores à apreensão mostram que o Ministério de Minas e Energia tentou, entre outubro e novembro de 2021, reaver as joias alegando que elas seriam analisadas para incorporação "ao acervo privado do Presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República".
Após essas tentativas fracassarem, em dezembro de 2022, com Bolsonaro já derrotado e a poucos dias de deixar a Presidência, foi realizada a última ofensiva para reaver as joias.
A suposta resistência do governo em declarar como bem público as joias e relógios avaliados em R$ 16,5 milhões contraria frontalmente entendimento fixado pelo Tribunal de Contas da União desde 2016, segundo o qual só presentes que sejam de uso pessoal ou de caráter personalíssimo podem integrar o acervo privado de um presidente.
O Regulamento Aduaneiro (decreto 6.759/2009) e instruções normativas da Receita Federal também não dão margem para que presentes de estado sejam transportados acondicionados em bagagem pessoal.
Caso isso ocorresse, seria preciso a declaração à alfândega de que o destino era privado, com pagamento de 50% de tributos sobre o valor que exceder US$ 1.000 (pouco mais de R$ 5.000).
Bolsonaro se manifestou sobre o assunto ainda no sábado (4), após evento nos Estados Unidos. Ele disse que não pediu nem recebeu qualquer tipo de presente em joias do governo da Arábia Saudita.
"Eu agora estou sendo crucificado no Brasil por um presente que não recebi. Vi em alguns jornais de forma maldosa dizendo que eu tentei trazer joias ilegais para o Brasil. Não existe isso", afirmou.
Segundo ele, a Presidência notificou a alfândega. "Até aí tudo bem, nada de mais, poderia, no meu entender, a alfândega ter entregue. Iria para o acervo, seria entregue à primeira-dama. E o que diz a legislação? Ela poderia usar, não poderia desfazer-se daquilo. Só isso, mais nada."
Nesta quarta-feira (8), o subprocurador-geral do Ministério Público junto ao TCU (Tribunal de Contas da União) encaminhou representação à corte com pedido de apuração do caso das joias.
A comitiva liderada por Bento Albuquerque ainda trouxe um segundo conjunto de joias da Arábia Saudita que não foi apreendido pela Receita.
Como mostrou a Folha de S.Paulo, o outro pacote, que inclui relógio, caneta, abotoaduras, anel e um tipo de rosário, todos da marca suíça de diamantes Chopard e supostamente destinados a Bolsonaro, estava na bagagem de um dos integrantes da comitiva e não foi interceptado pela Receita.
No último dia 29 de novembro, a praticamente um mês de Bolsonaro encerrar o mandato, o assessor especial do Ministério de Minas e Energia Antônio Carlos Ramos de Barros Mello entregou os itens ao Palácio do Planalto. Na versão de Mello, eles estavam sob a guarda da pasta.
Esse caso também está na mira da investigação aberta pela PF e é alvo de apuração conduzida pela Receita Federal.
Nesta quarta, Bolsonaro confirmou à CNN Brasil que esse segundo pacote de joias foi incorporado ao acervo privado dele e negou ilegalidades.
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