O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) elevou o teto de renda permitido para ingresso no novo Bolsa Família a um patamar que não repõe a perda inflacionária dos últimos anos e ignora o critério internacional de pobreza usado por organismos como a ONU (Organização das Nações Unidas).
Na prática, a medida limita o público do programa.
Desde 2018, durante o governo Michel Temer (MDB), o Bolsa Família considerava como pobre - portanto, elegível ao programa - a família com renda mensal per capita de até R$ 178.
Bolsonaro reajustou o montante para R$ 200 na segunda-feira (8) por meio de decreto que regulamentou o Auxílio Brasil.
O reajuste concedido por Bolsonaro é de 12,3%, enquanto a inflação acumulada no período foi de 20,8% (medida pelo INPC, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor, o mesmo usado para reajustar o salário mínimo e benefícios como pensões e aposentadorias).
Caso a inflação fosse considerada, o valor deveria ser reajustado para R$ 215.
Ainda que seguisse a inflação para reajustar o valor de 2018 até hoje, os valores seguiriam defasados.
O Bolsa Família foi criado originalmente (em 2004) com um limite de elegibilidade de R$ 100, e o valor deveria ser elevado para R$ 263,60 em 2021 caso a inflação fosse considerada.
Mesmo nesse cenário, critérios internacionais de definição da pobreza continuariam mais rígidos em relação às regras usadas no Brasil. Para corrigir a discrepância, seria necessário um reajuste acima da inflação.
A ONU e o Banco Mundial, por exemplo, consideram estar em extrema pobreza a família com renda diária de até US$ 1,90 per capita - equivalente a R$ 313 mensais, segundo o câmbio atual.
É esse o critério usado globalmente pela ONU no compromisso de erradicar a extrema pobreza até 2030, adotado em 2015 por 193 países-membro da entidade.
O governo tomou decisões sobre o Auxílio Brasil rodeado de incertezas sobre o tamanho do programa e sua fonte de recursos, conforme mostrou a Folha.
Regras fiscais como o teto de gastos (que limita o aumento das despesas), somadas a outros fatores - como a falta de revisão de despesas por parte de governo e Congresso - afetaram o alcance da medida e levaram o governo a planejar o drible da legislação sobre as contas públicas, alimentando temores do mercado e pressionando os juros.
O governo pode ser obrigado pelo STF (Supremo Tribunal Federal) a rever os números.
A DPU (Defensoria Pública da União), que conquistou em 2021 decisão favorável da corte para que o governo regulamente corretamente a lei da renda básica no país (sancionada em 2004), agora pede mudanças justamente nos critérios de renda do programa. O tema pode ser analisado ainda neste mês.
Na decisão em que determinou que o Executivo regulamente a renda básica, o STF chegou a reconhecer a defasagem observada ao longo dos anos na linha da pobreza – mas não exigiu a correção inflacionária.
Ed Fuloni, coordenador do comitê da renda básica da DPU, disse que a instituição tem embargos de declaração requisitando a exigência. A previsão é que o tema seja julgado ainda neste mês, até o dia 22.
A DPU reivindica que a linha da pobreza seja de meio salário mínimo mensal per capita (o equivalente, atualmente, a R$ 550).
Já para a linha da extrema pobreza, definida pelo governo atualmente em R$ 100 e que tem benefícios maiores, os defensores pedem que seja um quarto de salário mínimo per capita (equivalente a R$ 275).
Os valores sugeridos são resultado de cálculos de um grupo de trabalho que analisou diferentes levantamentos brasileiros e internacionais sobre o tema.
"O fato é que hoje, o que equivale a um quarto de salário mínimo para a pobreza e meio para a pobreza encontraria ressonância também em critérios do Banco Mundial e estudos do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada]. Então o nosso pedido é esse", disse Fuloni.
Ele lembrou que os dois requisitos são aplicados pelo governo em outros pagamentos sociais.
Um deles é o BPC (Benefício de Prestação Continuada, para pessoas com deficiência e idosos), concedido a quem tem renda de até um quarto do salário mínimo mensal per capita. E outro é o auxílio emergencial, que foi concedido durante a pandemia a quem tinha renda de meio salário mínimo mensal per capita (entre outros critérios).
Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, defende ainda que o reajuste da linha da pobreza deve ser recorrente, respeitando a inflação, e de forma que não dependa da vontade do governo do momento.
Para ele, hoje não está clara nem sequer a relação entre o valor apresentado pelo governo e estudos sobre o tema.
"Seria importante que o governo fizesse uma demonstração [de como ele chegou a] essa linha de pobreza. Ela não pode ser uma linha apenas administrativa para o programa, precisa ser uma linha de pobreza efetiva", afirmou.
"Como a linha da pobreza vai ser o critério de elegibilidade, ao considerar valores muito baixos, um número expressivo de pessoas que eram do Bolsa Família vai deixar de ser incorporado. É uma conta perversa essa", disse Ferreira.
Procurado para comentar por que o reajuste da linha de pobreza não cobriu a inflação ou ficou abaixo da referência usada pela ONU, o Ministério da Cidadania, responsável pelo programa, não havia respondido até a publicação deste texto.
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