O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) pediu que a Apex abrisse uma vaga para acomodar seu médico no escritório da agência de promoção comercial brasileira em Miami (EUA).
Ricardo Camarinha, que trabalha na Presidência e atende diretamente a Bolsonaro como seu assessor especial, pretende mudar para os Estados Unidos por motivos familiares. Só que, sem um trabalho, a obtenção de um visto de residência seria mais difícil.
Assim, Bolsonaro acionou o chefe da unidade da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos em Miami, o general da reserva Mauro César Lourena Cid.
Ele é um de seus mais próximos colegas da turma de 1977 da Academia das Agulhas Negras e chegou ao topo da hierarquia do Exército com quatro estrelas no ombro - enquanto o hoje presidente deixou a Força como um capitão indisciplinado em 1988.
O general Cid está em Miami desde meados de 2019. No dia 13 de agosto passado, ele informou sua equipe acerca da possibilidade de ter de abrigar Camarinha no time.
Houve contestações, segundo relatos de pessoas com conhecimento do caso: não há posto para médicos ou para atividades relacionadas à medicina no local.
Foi determinado que se estudasse algum tipo de alternativa, talvez na forma de contatos na área de saúde. A Apex é responsável por promover empresas brasileiras no exterior, facilitar negócios e atrair investimentos estrangeiros ao país.
Apesar das resistências, em 22 de setembro a ordem para a criação de um cargo foi reforçada como definitiva, dado que se tratava de um pedido pessoal do presidente. Houve espanto entre servidores, nos EUA e em Brasília.
A Folha de S.Paulo questionou a Apex sobre a indicação. A agência confirmou que "mesmo antes da pandemia, já vinha trabalhando para fortalecer a base industrial de saúde, seja com ações de promoção comercial, seja de atração de investimentos estrangeiros diretos".
"A agência pretende reforçar a atuação de sua rede de escritórios internacionais nesse campo. Esse reforço deverá incluir a contratação de profissional especializado, mas ainda não há definição de nomes", disse, por meio de sua assessoria.
A negociação para a concessão rápida de um visto para Camarinha está sendo feita diretamente na Embaixada dos EUA em Brasília, segundo pessoas familiarizadas com o caso.
Até aqui, todos os cerca de dez empregados no escritório, com a exceção do chefe, haviam sido contratados no mercado americano, e já tinham sua situação legal regularizada.
A reportagem enviou uma mensagem ao médico para conversar sobre o assunto. Ele a viu, segundo o aplicativo, mas não respondeu.
A operação toda foi coberta por sigilo. Não há emails com as ordens de Cid: todas foram passadas por telefone ou pessoalmente. O escritório do general e a Secom (Secretaria de Comunicação Social da Presidência) foram procurados, mas não responderam a pedido para falar sobre o caso até aqui.
A indicação vai na contramão do discurso oficial do "acabou a mamata", adotado desde a campanha eleitoral por Bolsonaro e seus apoiadores para sugerir que seriam extintos privilégios e "boquinhas" para amigos do poder.
O cardiologista Camarinha está no serviço público desde 1983 e anteriormente atendeu ao presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Ele é considerado um profissional eficiente e discreto, avesso à exposição pública.
O general Cid chegou a ser cotado para ser o comandante do Exército após Bolsonaro vencer o pleito de 2018, mas acabou indo para reserva quando o escolhido foi Edson Leal Pujol.
O chefe militar viria a bater de frente com o presidente, ao antagonizar suas diretrizes negacionistas na pandemia, levando à crise militar que derrubou todos os comandantes das Forças e o ministro da Defesa, em abril deste ano.
O general de Miami é pai do tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, ajudante de ordens do presidente e considerado hoje um de seus poucos homens de confiança dentro do Planalto. O AJO, jargão do seu cargo, filtra todos os contatos de Bolsonaro.
A Apex tem, brincam alguns de seus servidores, uma caveira de burro enterrada sob sua sede. Criada em 2003, ela sempre foi vista como um ponto de profissionalismo no serviço público, trabalhando em conjunto com o Itamaraty, mas sob o guarda-chuva do Ministério do Desenvolvimento Industrial e Comercial.
No governo Michel Temer (MDB), em 2016, o tucano José Serra aceitou ser chanceler sob a condição de levá-la para a guarda das Relações Exteriores, gerando atritos por sobreposição de funções com a área comercial da diplomacia.
Mas foi no governo atual que a agência ganhou infame notoriedade ao abrigar estrelas do nascente bolsonarismo, que acabara de ganhar as eleições presidenciais.
Seu primeiro presidente, Alex Carrero, caiu após embate com a polêmica Letícia Catel, uma amiga próxima do primeiro-filho Eduardo Bolsonaro e do então chanceler Ernesto Araújo que fora acomodada na diretoria de Negócios.
Logo depois, foi a vez de deixar o posto atirando Mario Vilalva, diplomata que acusou Ernesto de buscar esvaziar sua cadeira para robustecer a da amiga, que fora secretária-geral de forma voluntária do então partido de Bolsonaro, o PSL, em São Paulo.
Nos embates que envolviam olavistas e militares naquela largada de governo, os últimos se deram melhor. Entrou em maio daquele ano na chefia o almirante da reserva Sergio Segovia, que demitiu Catel e outros bolsonaristas. Como praxe, cerca de dez fardados ganharam espaço, inclusive o general Cid.
Neste ano, em mais uma acomodação já que militares permaneceram em seus cargos, assumiu a agência novamente um diplomata, Augusto Pestana.
Há um motivo para tanta disputa. Além da possibilidade de trabalho no exterior, a Apex é atrativa por oferecer salários suculentos e fora da regra do teto do funcionalismo (R$ 39,2 mil), já que é custeada pelo Sistema S.
Seu presidente ganha R$ 50,3 mil, enquanto os diretores amealham R$ 43 mil mensais.
Segundo os últimos dados disponíveis do Portal da Transparência, de junho, o general Cid por exemplo somou aos US$ 9,6 mil de seu cargo (cerca de R$ 50 mil na cotação média daquele mês) outros R$ 38 mil oriundos de sua reserva remunerada.
Como não se sabe onde tentarão encaixar o médico de Bolsonaro, é incerta sua remuneração eventual.
Na semana passada, a Apex esteve no centro de uma polêmica em Dubai, onde coordena o pavilhão brasileiro na Expo realizada na cidade árabe. Criticada pela vacuidade do estande brasileiro, que só tem um espelho d'água e projeções, ela recebeu uma semana de atividades culturais promovida por São Paulo.
Só que na hora de divulgar o evento, omitiu que era patrocinado ao custo de R$ 10 milhões (60% auferidos na iniciativa privada) pelo governo do tucano João Doria, rival de Bolsonaro. Disse que não todas as atrações eram "brasileiras", mas foi acusada de agir de forma "vexatória".
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