A denúncia contra o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) expõe a dificuldade que os órgãos de investigação têm na identificação de repasses de recursos ilícitos por meio de dinheiro vivo.
Mais da metade dos R$ 4,2 milhões disponibilizados, segundo o Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), para a suposta organização criminosa do filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) foram repassados em espécie ao policial militar aposentado Fabrício Queiroz.
O MP-RJ, porém, não detalha de que forma as entregas ocorriam. A defesa do senador nega as acusações e afirma que a denúncia contém "erros matemáticos".
Flávio foi denunciado sob acusação de desviar R$ 6,1 milhões de recursos públicos, valor que corresponde ao salário dos 12 ex-assessores na Assembleia Legislativa supostamente envolvidos no esquema de "rachadinha". O MP-RJ afirma que eles eram funcionários fantasmas.
Segundo a Promotoria, foi possível identificar o repasse de R$ 2,08 milhões nas contas de Queiroz. Outros R$ 2,15 milhões se referem a saques superiores a R$ 500 das contas dos ex-assessores acusados.
O MP-RJ descreve na denúncia operações em dinheiro vivo em benefício do senador no valor de R$ 1,7 milhão, seja por meio de pagamento de despesas pessoais ou depósitos na conta de Flávio ou Fernanda, sua esposa.
Os promotores ainda investigam eventual lavagem de dinheiro por meio da loja de chocolates da qual o senador é sócio --suspeita-se que chegue a outros R$ 1,6 milhão.
Segundo a denúncia, o dinheiro vivo movimentado por Flávio e sua mulher tem como origem o esquema da "rachadinha". O volume sacado das contas do casal no período não era suficiente para cobrir o uso de recursos em espécie apontados na investigação.
A identificação de boa parte dos depósitos na conta de Queiroz, apontado como operador financeiro do esquema, teve de ser feita de forma quase manual.
Eram poucas transferências de conta a conta. A maioria dos repasses foi identificada por meio da coincidência de valor e data do saque dos ex-assessores e do depósito na conta de Queiroz. Esse trabalho foi feito tanto pelos bancos como pelo MP-RJ, aponta a denúncia.
É o caso, por exemplo, da ex-assessora Luiza Souza Paes, que confessou ao Ministério Público detalhes do esquema. Dos 64 pagamentos feitos por ela a Queiroz, apenas 14 se deram por meio de transferência de conta a conta. Outros 50 ocorreram via saque com depósito imediato na conta do PM aposentado. Houve também dez saques sem identificação de depósito.
Luiza afirmou aos procuradores responsáveis pelo caso que foi orientada por Queiroz a agir dessa forma. A Promotoria diz que a intenção era tentar não vincular os repasses aos então assessores do gabinete de Flávio.
Investigadores acreditam que outros assessores fizeram depósitos não casados com os saques. A conta bancária do PM aposentado recebeu R$ 446,7 mil em depósitos em dinheiro além dos R$ 2,07 milhões vinculados aos ex-assessores entre 2007 e 2018.
O cumprimento de busca e apreensão na casa de outra ex-assessora, Flávia Regina Thompson da Silva, corroborou essa suspeita.
Os investigadores encontraram comprovantes de depósitos na conta de Queiroz feitos na mesma data de saques, mas em valores diferentes. Ou seja, ela aproveitava os saques que fazia para repassar ao PM aposentado para tirar o dinheiro de que precisava para outros gastos seus.
Os seis comprovantes encontrados mostraram que ela repassou ao menos R$ 32.703 a Queiroz. Pelo critério "conservador" (de coincidência exata entre saque e depósito), os investigadores haviam identificado apenas R$ 3.690.
Num dos documentos apreendidos, há uma anotação em que Flávia aparentemente comemora o fato de poder reter, a partir daquela data, R$ 1.400 do salário pago pela Assembleia.
"Comecei a tirar R$ 1.400. \o/", escreveu ela, sendo o último sinal uma representação de alguém levantando os braços em celebração. Antes, de acordo com os cálculos do MP-RJ, ela ficava com R$ 1.100 para si. O salário de Flávia era de cerca de R$ 7.400.
Além dos repasses identificados, Flávia sacou R$ 654,3 mil de sua conta. O MP-RJ também suspeita que esse dinheiro tenha sido repassado a Queiroz, embora não indique de que forma.
A Promotoria aponta, porém, que os saques mantêm o mesmo padrão de valores, restando R$ 1.100 ou R$ 1.400 para Flávia. Para os investigadores, é uma evidência de que o dinheiro retirado tinha o mesmo destino do depositado para Queiroz.
O padrão de "sobras" também acontecia com Luiza e outras três ex-assessoras --entre elas, Nathália Queiroz, filha do PM aposentado.
O policial militar Wellington Sérvulo também tem a maioria dos valores supostamente repassados a Queiroz sem registro bancário. Ele fez apenas duas transferências ao suposto operador que somam R$ 3.270, mas sacou R$ 36.800 em datas próximas ao pagamento de seu salário na Assembleia do Rio.
Sérvulo é apontado como funcionário fantasma porque passou quase metade do período em que estava lotado no Legislativo fluminense em Portugal, como aponta registros da imigração.
Não foram incluídos na denúncia um grupo de ex-assessores que não fizeram transferências para Queiroz, mas sacaram boa parte de seu salário. Esse conjunto de dez ex-funcionários é composto por parentes da advogada Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Bolsonaro.
A suspeita é de que esse grupo repassava o dinheiro à ex-mulher do presidente, e não a Queiroz. O MP-RJ afirmou que segue investigando outros núcleos de ex-funcionários públicos.
Ana Cristina é investigada no procedimento que apura a contratação de funcionários fantasmas no gabinete do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) na Câmara Municipal do Rio.
Flávio Bolsonaro afirmou em suas redes sociais que o Ministério Público do Rio "comete série de erros bizarros" na denúncia. Em nota, a defesa disse que ela já era esperada, mas não se sustenta.
"Dentre vícios processuais e erros de narrativa e matemáticos, a tese acusatória forjada contra o senador Bolsonaro se mostra inviável, porque desprovida de qualquer indício de prova. Não passa de uma crônica macabra e mal engendrada", declararam os advogados.
A defesa de Queiroz afirmou que não teve acesso à denúncia.
"Inaugura-se a instância judicial, momento em que será possível exercer o contraditório defensivo, com a impugnação das provas acusatórias e produção de contraprovas que demonstrarão a improcedência das acusações e, logo, a sua inocência", afirmou o advogado Paulo Emílio Catta Preta.
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