A divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril encerra um dos capítulos do inquérito aberto pelo STF (Supremo Tribunal Federal) para apurar as acusações do ex-ministro Sergio Moro de que o presidente Jair Bolsonaro queria interferir na Polícia Federal. A queda do sigilo do encontro ocorreu exatamente um mês após a reunião.
Procuradores, ministros e integrantes do governo consideram que Celso de Mello, relator do inquérito, tem adotado ritmo célere em busca de provas que possam dar sustentação à investigação.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, já citou a "marcha acelerada" das decisões do ministro.
Na celeuma em torno do sigilo da reunião, Mello fez questão de deixar claro que decidiria "brevissimamente" sobre a questão, apesar dos entraves operacionais para assistir à gravação, uma vez que o decano do STF está em isolamento em São Paulo.
À exceção do período de uma semana que levou para decidir sobre a publicidade do vídeo, desde que determinou a instauração do inquérito o ministro encurtou prazos para coleta de depoimentos, determinou perícia na gravação e mandou "oficiar com urgência" o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, e outros dois integrantes do governo para a entrega do vídeo.
Mello também mencionou a possibilidade de fazer "condução coercitiva" de ministros do governo na hipótese de não prestarem espontaneamente os depoimentos.
Para corroborar as acusações de Moro, foram ouvidos os generais Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), e Walter Braga Netto (Casa Civil). Moro disse que os três estavam presentes em reuniões e presenciaram o presidente ameaçando demiti-lo.
O ritmo imposto pelo ministro incomoda integrantes do governo e da PGR. O ministro levou três dias para autorizar a abertura do inquérito, em 27 de abril. Inicialmente, o decano do STF deu 60 dias para a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral fazerem a oitiva do ex-ministro da Justiça.
Três dias depois, Mello acolheu um pedido de urgência de congressistas e reduziu para cinco dias o prazo para a coleta do depoimento, e o fez sem pedir manifestação da PGR a respeito.
Juristas observam também que, quando tomou a decisão, os autos do inquérito estavam sob a tutela da PGR.
Em 1º de maio, a Procuradoria designou três procuradores para acompanhar diligências, que foram encaminhados à PF. O depoimento de Moro fora marcado para o dia seguinte, dia 2 de maio. No dia 4, a PGR pediu mais diligências, como a oitiva dos ministros de Estado.
Em 5 de maio, Mello deu 72 horas para o Palácio do Planalto entregar uma cópia dos "registros audiovisuais" da reunião de 22 de abril.
No dia seguinte, a AGU (Advocacia-Geral da União) pediu que o ministro reconsiderasse a decisão sob o argumento de que na reunião poderiam ter sido "tratados assuntos potencialmente sensíveis e reservados de Estado, inclusive de relações exteriores, entre outros".
Menos de 24 horas depois, o governo pediu para entregar só uma parte.
Os recursos em série levaram a especulações nas cortes superiores em Brasília sobre se Bolsonaro descumpriria a decisão do ministro.
Diante desse cenário, às vésperas do fim do prazo, a avaliação de integrantes de tribunais é a de que Mello poderia inclusive ter pedido a busca e apreensão no Palácio do Planalto para ter acesso ao registro audiovisual do encontro caso o governo descumprisse a decisão judicial.
Em uma sexta, dia 8, data-limite da entrega da gravação pelo governo imposta pelo decano, ministros do Supremo entraram em campo para buscar um entendimento entre Bolsonaro e sua assessoria jurídica e a corte para a entrega do vídeo.
O ministro da AGU, José Levi do Amaral, chegou a externar em telefonemas a integrantes da corte a preocupação da cúpula do Executivo sobre quem teria acesso à gravação.
A preocupação também foi expressa em uma terceira petição da AGU a Mello apresentada na tarde daquela sexta, em que ele pedia para saber quem teria acesso ao material uma vez que ele chegasse ao Supremo.
Do outro lado, embora tivesse pedido parecer à PGR, Mello deu sinais de que não pretendia ceder aos apelos da AGU de aceitar a entrega de só parte do conteúdo. Pelo contrário.
Na véspera da entrega do vídeo, houve o receio de integrantes do Judiciário e do governo de uma crise mais aguda com o Executivo caso houvesse descumprimento do prazo e Mello determinasse mandar apreender o vídeo.
O ministro tem deixado explícito que as decisões devem ser cumpridas, como disse que os ministros do governo poderiam ser conduzidos "debaixo de vara" caso não prestassem o depoimento sobre a possível interferência de Bolsonaro na autonomia da PF.
Ao levantar o sigilo do vídeo, o decano do STF também alertou que o descumprimento de ordem judicial pode levar o presidente ao cometimento de crime de responsabilidade. No caso do vídeo, avaliaram pares do Mello e procuradores, não seria diferente.
A decisão do ministro sobre a apreensão do material não seria adotada sob raciocínio das consequências políticas, mas da técnica investigativa, a fim de ter acesso o possível elemento de prova.
Do ponto de vista jurídico, se o governo não respeitasse o período estipulado pela Justiça, representada no caso pelo ministro, estaria caracterizado o descumprimento de ordem judicial, o que permite a determinação de medidas mais invasivas, como busca e apreensão.
Dado o cenário, integrantes do governo e do Supremo conversaram e houve a entrega do vídeo no fim da tarde de sexta.
Assim que chegou ao STF, o material, original, foi lacrado em um envelope com as assinaturas do advogado-geral da União, da delegada responsável pelo caso e um representante do Supremo.
Depois dessa etapa, o vídeo foi colocado em um cofre filmado, onde ficam as provas de caráter sigiloso da corte, até o despacho de Mello determinando que as partes assistissem ao conteúdo do vídeo.
Ministros do Supremo dizem que o governo está bem orientado e elogiam a conduta de José Levi à frente da AGU. A tentativa de contornar inicialmente a entrega do vídeo ocorreu principalmente por pressão dos integrantes do governo que temiam a consequência da sua divulgação.
Advogados consideram normal o ministro imprimir ritmo mais rápido ao inquérito por envolver o presidente da República. E, de fato, tramitação da investigação é muito mais célere do que outras sob relatoria de Mello.
Relator do inquérito contra o ministro da Educação, Abraham Weintraub, por racismo em publicação nas redes sociais em que insinua que a China se beneficiou pela pandemia, o ministro levou 14 dias para determinar o início das investigações, enquanto no caso de Moro e Bolsonaro foram três dias.
Na sexta-feira (22), Bolsonaro reclamou da divulgação de "99%" do vídeo. Mello retirou uma parte em que integrantes do governo reclamavam da China.
O presidente disse que estava na iminência de destruir o vídeo. "Eu cumpri a decisão do sr. ministro Celso de Mello. Sempre acreditei na independência entre os Poderes", disse.
"Entregamos o vídeo e peticionamos para que se divulgasse apenas o que tinha relação com o inquérito", disse. "A responsabilidade de tudo no vídeo que não tem a ver com inquérito é do senhor ministro do Supremo Celso de Mello."
O encontro, recheado de palavrões, ameaças de prisão, rupturas institucionais, xingamentos e ataques a governadores e integrantes do STF, foi tornado público em quase sua integralidade. A íntegra do vídeo mostrou um temor do presidente em ser destituído.
Bolsonaro ainda revelou contar com um sistema de informação particular, alheio aos órgãos oficiais, o que reforça as indicações de interferência política na PF.
Ações de combate à pandemia do coronavírus foram tratadas de forma lateral no encontro.
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