A exemplo do que ocorre em todo ano que antecede as eleições, a Câmara dos Deputados deu início a uma discussão para reformar o sistema político-eleitoral do país. Dessa vez, o bloco de partidos de centro e direita do chamado centrão irá conduzir o processo e já há anúncio da intenção de limitar a ação da Justiça Eleitoral, rever regras para beneficiar os partidos nanicos e voltar a discutir a mudança do sistema eleitoral para o chamado "distritão".
Um grupo de trabalho foi instalado na última quarta-feira (24), por ordem do presidente da Câmara e líder do centrão, Arthur Lira (PP-AL), e tem o objetivo de votar ainda neste semestre um amplo projeto de alterações das regras eleitorais e políticas. Paralelamente, uma comissão especial irá debater as alterações que necessitem de mudança na Constituição.
Nos bastidores, deputados afirmam que, a exemplo de anos anteriores, o centrão repetirá a tática de "colocar o bode na sala". Ou seja, pôr em discussão um amplo leque de temas, alguns extremamente polêmicos, para, ao final, retirar boa parte deles em troca da manutenção de pontos de afrouxamento de regras de fiscalização, transparência e punição contra candidatos e partidos.
Um dos objetivos abertos do grupo de trabalho é, de acordo com o roteiro estabelecido pela relatora, Margarete Coelho (PP-PI), "conter o ímpeto ativista do Poder Judiciário em regulamentar matérias que devem ser previstas em lei em sentido estrito e não em resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)".
A medida ecoa um dos principais desejos de caciques partidários, o de barrar resoluções eleitorais do tribunal que mudam as regras do jogo baseadas em interpretações da lei vigente.
Nas eleições municipais de 2020, por exemplo, as cúpulas partidárias foram praticamente unânimes em reclamar da decisão do Supremo Tribunal Federal de estabelecer a divisão equânime do dinheiro público de campanha entre candidatos negros e brancos. As siglas disseram ter sido pegas de surpresa, sem tempo hábil para se preparar.
Margarete Coelho disse que o objetivo "é conferir mais previsibilidade aos eleitores, aos candidatos e aos próprios juízes eleitorais".
Segundo ela, sem normas claras "as regras do jogo acabam por serem definidas nas vésperas da eleição, mediante decisões judiciais que muitas vezes são conflituosas".
A criação do grupo de trabalho gerou crítica de entidades da sociedade civil que militam pela transparência e o aperfeiçoamento da legislação eleitoral.
Elas enviaram carta a Lira e aos outros 512 deputados manifestando preocupação com o exíguo tempo de debate e com a decisão de montar um grupo de trabalho em vez de uma comissão especial, que tem regras mais claras e participação proporcional dos partidos políticos.
"O efetivo compromisso com a transparência do processo legislativo e a real abertura à participação social demandariam a urgente conversão do referido grupo de trabalho em comissão especial", diz a carta, assinada, entre outras, pela Transparência Partidária, Transparência Brasil, Transparência Internacional, Instituto Não Aceito Corrupção, Associação Contas Abertas e Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social
De acordo com o diretor-executivo do Transparência Partidária, Marcelo Issa, Lira não deu resposta, assim como a grande maioria dos deputados.
"Se tomarmos como parâmetro o que aconteceu em 2019 [quando a Câmara tentou emplacar um projeto relâmpago com alterações na lei eleitoral], a experiência é muito ruim. Um projeto com uma série de retrocessos cujo texto apareceu e foi votado e apreciado no mesmo dia, sem tempo hábil para nenhuma organização da sociedade civil avaliá-lo. O receio é que essa sistemática se repita. O histórico não é favorável", afirmou Issa.
Ele defende a necessidade de reforço da transparência, gestão, fiscalização e democratização interna dos partidos, temas que tradicionalmente passam ao largo das reformas eleitorais e políticas discutidas no Congresso.
A sessão inicial do grupo de trabalho durou apenas 40 minutos, na quarta-feira. Menos de dez deputados participaram, e há intenção de realização de reuniões fechadas, futuramente.
De acordo com Margarete, o principal objetivo do grupo criado por Lira "é sistematizar as leis eleitorais, que se encontram esparsas pelo ordenamento jurídico brasileiro, e atualizar o código eleitoral, que data de 1965, gestado em pleno regime militar".
Segundo ela, a intenção é reunir um grupo de parlamentares especializados para realizar uma análise mais técnica dos temas.
O presidente da Câmara não respondeu às perguntas feitas pela Folha.
O plano de trabalho apresentado pela deputada, que é uma das principais conselheiras jurídicas de Lira, aborda a discussão de um grande volume de pontos da legislação: pesquisas e alistamento eleitoral, competência do TSE e do Ministério Público, "limites do poder de polícia da Justiça Eleitoral", regras de escolha dos candidatos, do julgamento de seus pedidos de registro, prestação de contas eleitoral, propaganda eleitoral e financiamento das campanhas, entre vários outros.
Já na comissão especial que deve discutir alterações na Constituição, dois temas têm sido ventilados: a mudança do sistema eleitoral de escolha para o Legislativo e o afrouxamento de regras adotadas nos últimos anos para tentar reduzir o número de partidos políticos.
O sistema eleitoral desejado por alguns partidos é o distritão, que tem uma lógica simples: na eleição para deputados federais, estaduais e vereadores, são eleitos os mais votados.
No atual sistema, chamado proporcional, as cadeiras na Câmara dos Deputados, Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais são distribuídas de acordo com a votação total obtida pelo partido (voto na legenda) e por todos os seus candidatos.
A lógica é fortalecer as legendas. Elegem-se aqueles mais votados dentro da sigla, respeitadas as vagas de cada uma.
O distritão, além de enfraquecer os partidos políticos, gera um enorme contingente de votos "desperdiçados", que são aqueles dados aos não eleitos.
Em 2014, por exemplo, o "voto inútil", que não ajudou a eleger ninguém, somou apenas 6% na escolha dos deputados federais por São Paulo, já que o voto, mesmo sendo dado em um candidato que não foi eleito, ajudou o partido ou a coligação – que na época era permitida a obter mais vagas.
Se o distritão estivesse em vigor, 64% dos votos dos eleitores na capital paulista não teriam tido nenhuma valia para a escolha dos deputados federais. A Câmara já tentou aprovar a medida algumas vezes, mas em todas ela foi derrotada.
Outras ideias defendidas por deputados buscam rever regras adotadas nos últimos anos para tentar conter a proliferação de partidos e até extinguir algumas das atuais 33 siglas.
Uma delas quer trazer de volta a permissão de coligação entre os partidos para a eleição de integrantes do Legislativo. Partidos nanicos têm grande dificuldade de, no sistema proporcional, eleger representantes sem as coligações com siglas maiores.
Além disso, há pressão para o afrouxamento da cláusula de desempenho (ou de barreira). Por ela, cada partido que em 2022 não conseguir atingir um patamar mínimo de votos nacionais nas eleições para a Câmara dos Deputados perde direito a receber financiamento público, propaganda na TV e rádio, além de estrutura de gabinete nas casas legislativas. Isso tende, a longo prazo, a extinguir as siglas nanicas.
Prova disso é que em 2018, primeiro ano de vigência da cláusula, 14 partidos não atingiram a cláusula. Os nanicos PRP, PHS e PPL acabaram sendo obrigados a se fundir a siglas maiores.
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