Chamar o presidente Jair Bolsonaro de "genocida" por conta da política desastrosa do governo federal no enfrentamento da pandemia não configura crime, avaliam especialistas ouvidos pelo Estadão. Na opinião de cinco advogados consultados pela reportagem, o presidente da República ocupa o posto mais importante na estrutura política nacional - e, portanto, é uma autoridade pública sujeita às mais diversas críticas da população, por mais ácidas e duras que sejam. Dessa forma, os comentários não deveriam ser enquadrados na Lei de Segurança Nacional, nem como injúria ou difamação.
O advogado criminalista João Paulo Boaventura critica o uso da Lei de Segurança Nacional, em vigor no País desde 1983, em plena ditadura militar, para incriminar opositores do governo Bolsonaro. Foi com base nela que a Polícia Civil do Rio intimou o youtuber Felipe Neto a prestar esclarecimentos, após acusação apresentada pelo vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do chefe do Executivo. Uma decisão da Justiça do Rio, no entanto, suspendeu a investigação do influenciador digital.
Boaventura aponta que a lei tem em seu espírito um período em que a liberdade de expressão "era controlada pelo Estado". Segundo Boaventura, ao ser usada novamente contra opositores do presidente da República, a legislação expõe as semelhanças do atual ocupante do Planalto "com a forma de agir dos governos autoritários".
"Não pode ser considerado democrático tipificar como crime o direito dos cidadãos criticarem, ainda que de maneira incisiva, o presidente da República. Calúnia é a imputação falsa de fato definido como crime, enquanto a injúria é a ofensa à dignidade ou decoro", disse Boaventura.
"Para a configuração do crime de calúnia no uso do termo 'genocida', exige-se o conhecimento da falsidade da imputação, o que não se tem no caso. Por outro lado, no caso da calúnia, o presidente é pessoa pública e ocupa cargo em que se expõe a críticas pelos cidadãos, asseguradas constitucionalmente."
A lei prevê, por exemplo, pena de 1 a 4 anos de prisão por "caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação". O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), é relator de duas ações que contestam a Lei de Segurança Nacional, apresentadas pelo PTB e PSB. Segundo o Estadão apurou, o ministro avalia antecipar a decisão sobre o caso.
Na avaliação do advogado Pierpaolo Cruz Bottini, professor da Faculdade de Direito da USP, "não há crime na manifestação de desprezo ou na adjetivação" contra Bolsonaro.
"Haveria crime se alguém relatasse ter presenciado o presidente cometer crime, sabendo da falsidade da imputação. Não parece ser o caso. O único uso dessa lei é reprimir, calar e inibir as críticas, que são mais do que necessárias nesse terrível momento em que vivemos. Não é possível obrigar que aguentemos calados o que vem ocorrendo", afirmou.
"A lei (de Segurança Nacional) é parte do entulho autoritário incompatível com uma constituição democrática de direito, que fixa a pluralidade e a liberdade de expressão entre suas diretrizes."
A legislação tem sido utilizada pelo ministro da Justiça, André Mendonça, para embasar pedidos de investigação contra jornalistas e críticos do governo federal. Na última quinta-feira, cinco manifestantes foram detidos pela Polícia Militar do DF após estenderem uma faixa com os dizeres "Bolsonaro Genocida" em frente ao Palácio do Planalto. Eles foram levados à sede da Superintendência da Polícia Federal em Brasília por, segundo nota da corporação, por "infringir a Lei de Segurança Nacional".
A faixa mostrava uma caricatura de Bolsonaro com rabo e chifres, transformando uma cruz vermelha -- símbolo da saúde -- em uma suástica nazista. O desenho é baseado numa charge do cartunista Aroeira. Segundo a PM, a charge foi o motivo da detenção.
A abertura de investigações com base na Lei de Segurança Nacional e a intimação para depoimentos de opositores de Bolsonaro levou à criação da frente "Cala-boca já morreu", formada pelos escritórios de André Perecmanis, Augusto de Arruda Botelho e Davi Tangerino. O grupo pretende defender de graça pessoas que entrarem na mira da Justiça por criticarem autoridades públicas.
"A minha motivação para integrar esse grupo é muito simples. Eu não quero viver num país autoritário. O autoritarismo não chega do dia pra noite, mesmo os golpes são construídos antes, o autoritarismo avança por fissuras, por pequenas rupturas que vão sendo toleradas", comentou Tangerino.
"O que não se pode é imputar fatos inverídicos a quem quer que seja, não se pode tolerar discurso de ódio, falas contra a democracia. Mas, de novo, uma crítica, um adjetivo negativo, por mais negativo que seja, na medida que traduz uma percepção, uma opinião sobre o governo, tem de ser sempre tolerada", acrescentou.
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