No dia 18 de maio, o então prefeito de Guamiranga (PR), Marcos Henrique Chiaradia (PSL), afirmou em entrevista a uma rádio local que estava tomando medicamentos sem eficácia contra a Covid-19, como hidroxicloroquina e zinco, para tratar a doença.
Poucos dias antes, ele passou a oferecer o mesmo tratamento aos cerca de 9.000 habitantes da cidade, que fica a 200 km de Curitiba. A ideia surgiu após uma visita a Chapecó (SC), onde a prefeitura adotou a mesma estratégia.
Uma semana depois, suas condições se agravaram. Chiaradia foi hospitalizado e, em 16 de junho, ele morreu em decorrência da doença. Ficou apenas 18 dias no cargo, pois sua candidatura só foi confirmada após recurso judicial. O ex-prefeito da cidade, Ângelo Machado (DEM), segundo colocado na eleição, também morreu de Covid-19, em janeiro.
Mesmo com recomendações contrárias de especialistas e do próprio Ministério da Saúde, a iniciativa implementada em Guamiranga tem ganhado adeptos no interior do Paraná, um dos estados que mais sofrem com a pandemia. A taxa de ocupação de UTIs destinadas a pacientes com Covid-19 não fica abaixo de 90% há cinco meses.
Pelo menos outras duas cidades do interior paranense adotam o chamado tratamento precoce contra a Covid, com remédios, em geral, comprados com dinheiro público.
Em Guamiranga, que continua oferecendo o "kit Covid" para os doentes mesmo após a morte do prefeito, foram gastos R$ 23 mil na compra de 9.000 comprimidos de ivermectina e 3.000 de azitromicina em janeiro, segundo indica o portal da transparência da prefeitura.
Em maio, o prefeito Chiaradia anunciou o recebimento de uma nova remessa e posou para fotos ao lado de caixas de medicamentos. O valor da aquisição não consta no portal da transparência.
O assessor de planejamento da prefeitura, Augusto Pontarolo, afirmou que o tratamento foi um dos fatores que ajudaram na queda dos índices da pandemia na cidade, que chegou a registrar 30 novos casos diários de Covid-19 e agora mantém uma média de dois. Contudo, não há evidências científicas que permitam associar uma coisa à outra.
Os remédios, segundo ele, são oferecidos só após o paciente passar por uma avaliação médica. "O médico tem autonomia para receitar o que ele quer", afirmou. Questionado sobre outros detalhes da compra dos medicamentos, Pontarolo disse que passaria o contato do jornal Folha de S.Paulo ao setor responsável, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.
A cerca de 60 km dali, em Irati, há uma licitação de valor total de R$ 1,6 milhão em aberto para a compra de 41 medicamentos a serem fornecidos pelo município. Na lista estão ivermectina, azitromicina, hidroxicloroquina, zinco quelato, vitamina D, AAS, dipirona e paracetamol.
Alguns desses remédios foram receitados e fornecidos no dia 24 de maio à confeiteira Silvia Sedoski Maluf, 49, numa unidade montada pela prefeitura para atender pacientes de Covid-19. "Passei pela triagem e logo em seguida pelo médico que me prescreveu medicamentos para a Covid-19, em específico para a garganta, com alívio imediato", contou.
Além dos remédios, ela saiu do local com um papel contendo informações sobre o "tratamento precoce": "Consiste em iniciar com as medidas disponíveis o mais rápido possível, para minimizar a replicação viral [...] visando reduzir o número de pacientes que progridem para fases para graves da doença", dizia o documento.
Ao final, um alerta: "Não é uma promessa de 'cura fácil', posto que lidamos com uma doença nova e de difícil manejo quando se agrava". Três dias depois, após passar mal, Silvia acabou sendo internada, recuperou-se e teve alta cerca de uma semana depois.
Os medicamentos já vinham sendo disponibilizados pela prefeitura para casos positivos de Covid-19, mas, com o agravamento da pandemia, no último mês, a administração divulgou que o kit passaria a ser entregue mesmo a pacientes que apresentassem simples suspeita de contaminação. Na ocasião, a prefeitura divulgou que o protocolo tem amparo do Ministério da Saúde.
A mudança levou o Ministério Público a notificar o município, mas a investigação foi arquivada depois que a prefeitura esclareceu que os remédios só são prescritos após avaliação médica.
Procurada pela Folha para maiores esclarecimentos sobre o tratamento precoce implantado na cidade, a secretária municipal de Saúde, Jussara Kublinski Hassen, não retornou o contato.
Apesar de ter tido melhora nos índices de novos casos e mortes por Covid nas últimas semanas, impulsionada por duras medidas restritivas e ampliação da vacinação, na cidade de cerca de 61 mil habitantes há atualmente apenas uma vaga de UTI disponível.
Os moradores de União da Vitória, a cerca de 250 km de Curitiba, também podem ter acesso a cloroquina, azitromicina, sulfato de zinco e tamiflu para tratar a Covid-19, mesmo sem comprovação de eficácia dos remédios contra a doença. No município de aproximadamente 58 mil habitantes também só há uma UTI vaga para pacientes com a Covid-19.
A diretora farmacêutica do município, Vanessa de Lima Bostelmann, admitiu que a prefeitura disponibiliza os remédios, mas afirmou que a maior parte deles é doada por farmácias locais e que apenas dois são comprados diretamente pelo poder público.
"A farmácia municipal distribui para a unidade de pronto-atendimento e de lá o paciente já sai com esse protocolo de medicamentos nos casos indicados [pelo médico], assinando um termo de consentimento", explicou. Segundo ela, o doente é informado de que não existem "estudos conclusivos" sobre a eficácia dos fármacos no combate à Covid-19.
A Folha de S.Paulo questionou a prefeitura sobre os gastos com os medicamentos, mas não houve retorno. Não há detalhamento dessas informações no portal da transparência.
A distribuição desse tipo de remédio com recursos públicos tem sido alvo do Tribunal de Contas do Paraná (TCE). No final de junho, o órgão alertou a prefeitura de Joaquim Távora, a 340 km da capital. A administração acabou cancelando uma licitação que tinha como fim a compra dos comprimidos.
Em março, o TCE também multou o prefeito de Paranaguá, Marcelo Elias Roque (Podemos), e a secretária municipal de Saúde, Lígia Regina de Campos, em R$ 4.436 por terem comprado e distribuído ivermectina aos moradores da cidade do litoral do Paraná. Procurados via assessoria, eles não retornaram o contato.
As orientações fizeram com que a prefeitura de Ponta Grossa não adquirisse os medicamentos mesmo após a promulgação, em maio, de uma lei pela Câmara de Vereadores prevendo a disponibilização gratuita de kits de medicamentos para o tratamento precoce pelo SUS.
Um dos autores da lei, o vereador Leandro Bianco (PATRIOTAS), citou Chapecó como exemplo de implantação da medida e disse que "estudos científicos" embasam a norma. A ideia, segundo ele, era de que o Executivo firmasse parcerias com o setor privado para distribuir os remédios, "o que realmente não está acontecendo".
O presidente da Fundação Municipal de Saúde, Rodrigo Manjabosco, afirmou que, além do TCE, o não cumprimento da lei segue as orientações da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS). "Os empresários ou um grupo de pessoas podem disponibilizar [os remédios]. A Fundação, com recursos públicos, não pode", explicou.
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