O projeto de lei das fake news, aprovado no Senado em junho e que está em discussão na Câmara, prevê a criação de duas novas instâncias para lidar com as plataformas de redes sociais.
Uma delas seria o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, com representantes do Estado, de empresas e da sociedade civil, e a segunda uma instituição de autorregulação composta pelas plataformas e serviços de mensagem.
Apesar de envolver a criação de duas novas instâncias, este ponto do projeto de lei não tem sido debatido de forma ampla. Exemplo disso é que a chamada autorregulação regulada (com interferência do Estado) não foi tema de nenhuma das audiências online previstas pela Câmara sobre o projeto.
Melhorias nas previsões do que caberia ou não a tais instâncias são vistas como necessárias mesmo por quem defende esse tipo de autorregulação. Não há consenso, no entanto, sobre qual seria o melhor modelo.
Na chamada autorregulação regulada, o Estado busca fazer com que o setor privado atue guiado pelo interesse público, por meio de uma regulação que distribui as responsabilidades. O objetivo é que as estratégias de regulação não fiquem totalmente a cargo do governo tampouco das empresas.
O mecanismo veio de emenda apresentada pelo senador Antonio Anastasia (PSD-MG) e foi inspirado na lei alemã de combate ao discurso de ódio que entrou em vigor no país no final de 2017.
Na Alemanha, no entanto, não houve a criação de um conselho estatal com poder de regulação, como na proposta brasileira. No caso alemão, as plataformas se reportam a um órgão que é parte do Ministério da Justiça do país e recebe os relatórios das plataformas. Ele acompanha as medidas de moderação das plataformas e pode inclusive aplicar multas administrativas, mas sem criar regras.
Segundo explicou Anastasia à época da aprovação, o mecanismo seria um modelo híbrido de regulação, público e privado. "A autoridade de internet [conselho] dá diretrizes, mas a instituição de autorregulação elabora as regras, que precisam ser aprovadas pela autoridade."
Entre os principais pontos de embate estão a composição do conselho e as suas atribuições, que incluem, por exemplo, a criação de um código de conduta que deverá lidar entre outros temas com a desinformação. Criar duas instâncias ao mesmo tempo tampouco é consenso.
Defensores da criação de uma instituição de autorregulação das empresas argumentam que é o que vai promover dinamismo e transparência ao processo de moderação.
Por outro lado, há quem defenda que criar apenas o conselho seria um caminho melhor, pois uma instituição reunindo as plataformas poderia criar um desequilíbrio de poder entre o Estado e as empresas.
Segundo o projeto de lei aprovado no Senado, o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet tem, entre suas atribuições, a realização de estudos, pareceres e recomendações e o acompanhamento e avaliação das medidas estabelecidas, recebendo relatórios das plataformas.
Também caberá ao conselho a criação de um código de conduta sobre como as redes sociais e serviços de mensagem deverão lidar, por exemplo, com desinformação, discurso de incitação à violência e ataques à honra. Tal código deverá ser aprovado pelo Congresso Nacional.
A pesquisadora Clara Iglesias Keller, doutora em direito público pela Uerj, diz acreditar que um código de boas práticas, fruto de uma regulação estatal, pode ser uma boa ideia. Segundo ela, o papel do conselho seria o de esmiuçar o que está na lei, tendo a própria lei como limite.
Já para a professora de direito da PUC-Rio Caitlin Mulholland, a ideia de "recomendação" estabelecida pela projeto significa dar ao conselho o poder de determinar que certas ações sejam consideradas ilícitas ou abusivas.
"Se o conselho tomar a direção de regular condutas na internet recomendando que determinadas ações devem ser consideradas ilegítimas, o efeito que teremos é de censura prévia", afirmou.
Além disso, como o projeto de lei abandonou a tentativa de definir desinformação, críticos questionam como o conselho poderia criar regras sobre algo que nem sequer foi definido pela lei.
"Se o projeto de lei sequer estabelece o que é desinformação, como [o conselho] vai estabelecer um código de conduta para algo que o projeto de lei não define?", questionou Cristina Tardáguila, diretora-adjunta da International Fact-Checking Network (IFCN).
Tardáguila é contrária à criação de leis para combater desinformação. Mas ela pontua que, caso o projeto seja aprovado, é importante definir não só o que o conselho pode fazer, mas também o que ele não pode.
Bernardo Araujo, consultor em regulação de tecnologias e proteção de dados, vê como positiva a criação de um conselho que vá contribuir com a autorregulação regulada.
No entanto, ele tem dúvidas quanto ao formato escolhido pelo projeto, que, segundo ele, pode fazer com que surjam questionamentos quanto à captura do órgão por interesses políticos.
"Considerando o histórico brasileiro, parece estranho que um órgão que venha a exercer funções técnicas em um ambiente complexo esteja vinculado diretamente ao Poder Legislativo, mais especificamente ao Senado Federal. Isto pode fazer com que, na prática, este órgão tenha pouca independência", afirmou Araújo.
"Me preocupa que o conselho não traga previsão de consultas públicas e outras formas de participação", disse.
Ricardo Campos, diretor do Instituto Legal Grounds for Privacy Design (LGPD), defende a criação da instituição de autorregulação, mas diz que é preciso dar incentivos para que as empresas criem uma instituição só.
Um exemplo, segundo ele, seria estabelecer multas menores para essas plataformas, em caso de algum descumprimento.
De acordo com o projeto aprovado no Senado, a participação na instituição não seria obrigatória. Na verdade, o projeto define que as empresas poderão criar uma instituição de autorregulação, ou seja, se quiserem, e que ela deverá ser certificada pelo conselho.
"Se elas não criarem uma instituição para lidar, por exemplo, com esses procedimentos de direito de defesa e centralizar isso, vai fragmentar. Cada plataforma vai ter que ter o seu compliance com a lei", disse Campos.
Keller, entretanto, se diz cética quanto à criação de um órgão de autorregulação.
Ela é favorável a um arranjo que presuma uma relação mais direta entre as plataformas e o Estado.
"Apesar dos benefícios operacionais, tenho preocupação que isso desequilibre um pouco a relação de forma que se predomine a autorregulação em detrimento de uma maior participação estatal."
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