SÃO PAULO - A decisão do ministro Marco Aurélio de Mello, do STF (Supremo Tribunal Federal), que permitiu que o traficante André de Oliveira Macedo, 43, conhecido como André do Rap, saísse pela porta da frente da Penitenciária de Presidente Venceslau, no interior paulista, provocou um intenso debate no meio jurídico neste final de semana.
O ministro havia considerado, na última sexta (9), que André do Rap estava preso desde o final de 2019 sem uma sentença condenatória definitiva, excedendo o limite de tempo previsto na legislação brasileira.
Considerado um dos principais chefes do PCC (Primeiro Comando da Capital), facção criminosa que atua dentro e fora dos presídios, ele foi condenado a 15 anos, 6 meses e 20 dias de prisão. Seus advogados recorreram da decisão, emitida em 2013, e ainda não há trânsito em julgado.
Não menos polêmica foi a decisão do presidente do STF, Luiz Fux, que suspendeu a ordem de Marco Aurélio Mello e determinou o retorno imediato de André do Rap à prisão.
A defesa de André do Rap afirmou que ele iria de Presidente Venceslau para Guarujá (SP), mas segundo o Jornal Nacional, da TV Globo, ele foi monitorado por investigadores e seguiu para Maringá (PR), de onde autoridades acreditam que ele fugiu para o Paraguai. O traficante é considerado agora foragido da Justiça.
A maioria dos criminalistas ouvidos pela Folha concordaram com a decisão de Marco Aurélio Mello. Mas houve divergências.
"Decisão correta do ministro, uma vez que estava caracterizado o excesso de prazo da prisão", diz Luiz Henrique Machado, mestre em direito penal pela Universidade Humboldt de Berlim, na Alemanha. "André do Rap estava preso, sem culpa formada, desde 15 de dezembro de 2019. A lei anticrime é clara. Se a medida não for reavaliada de ofício pela autoridade judicial dentro de 90 dias quando da decretação, a prisão deve ser relaxada."
Marco Aurélio Mello, em entrevista à Folha, disse que cumpriu sua obrigação de aplicar o trecho introduzido no Código de Processo Penal pelo pacote anticrime que prevê a necessidade de o juiz renovar a prisão preventiva a cada 90 dias, o que não ocorreu no caso.
"O juiz não renovou, o MP não cobrou, a polícia não representou para ele renovar, eu não respondo pelo ato alheio, vamos ver quem foi que claudicou", disse o ministro.
Rogério Taffarello, que é mestre em direito penal pela USP e dirige a área penal de uma das principais bancas de advogados do país, concorda com o argumento de Marco Aurélio.
"Cabe às autoridades responsáveis pelo caso cuidar para justificar a manutenção da prisão preventiva dentro desse prazo enquanto não há condenação definitiva. Se isso não ocorreu, a prisão passou a descumprir a lei", diz Taffarelo.
"O papel do juiz que recebe uma petição de habeas corpus é olhar se a lei foi cumprida no caso, ou se não foi. E ele deve julgar de acordo com a lei e não com o nome que conste na capa dos autos, goste-se ou não da pessoa que figure como o investigado ou réu no caso concreto."
O ex-juiz federal do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região) Henrique Herkenhoff tem outra visão e acha que havia motivo para manter o traficante preso. Antes do tribunal, Herkenhoff foi procurador da República e teve atuação destacada no combate à Scuderie Detetive Le Cocq, um grupo de extermínio que atuou entre as décadas de 1960 e 1980 e cometeu uma série de assassinatos no Rio de Janeiro e no Espírito Santo.
"É bastante duvidoso que seja necessário reexaminar periodicamente a necessidade da prisão cautelar após a sentença condenatória, sem pedido do paciente [preso]", diz o ex-juiz.
"Se a decisão que determina a prisão está mal justificada, ou não foi proferida a decisão de revisão no prazo (que é impróprio, ou seja, não impede uma decisão tardia), o direito do preso é a uma decisão fundamentada, não à soltura, ainda mais de pessoa notoriamente perigosa, com evidente tendência a se evadir, já condenada em segunda instância, ainda que não transitado em julgado."
Herkenhoff sugere que o correto é fixar um prazo curto para que essa decisão seja proferida ou o próprio julgador suprimir a instância e fazer ele mesmo essa avaliação.
A criminalista Dora Cavalcanti, conselheira do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), diz que a decisão de Marco Aurélio causa uma reflexão.
"O ministro encampou corretamente o novo texto do artigo 316 do Código de Processo Penal. Choca porque traz uma novidade marcante, a opção do pacote anticrime de colocar limites às prisões processuais intermináveis", diz a advogada.
"E o relator foi coerente com sua conhecida posição, julgar os processos pelo conteúdo, nunca pela capa. É o melhor que se pode esperar de um integrante da Suprema Corte."
Ao cassar a decisão de Marco Aurélio Mello, Fux aumentou ainda mais a temperatura do debate.
Herkenhoff concorda com a decisão do presidente do STF e diz que "o julgador não pode viver em uma torre de marfim, aferrando-se a uma interpretação da lei que não leve em consideração as consequências práticas de suas decisões".
"Na verdade, esse filtro das consequências práticas de uma decisão deve ser feito pelo próprio relator. Como a fuga era quase certa e o preso, de uma periculosidade que, inclusive, ultrapassa a questão individual (não se trata apenas do que, sozinho, pode fazer em liberdade), era o caso de suspensão dos efeitos da decisão", diz Herkenhoff.
O juiz aposentado do TRF-4 (Tribunal Regional Federal da 4ª Região), Jorge Antônio Maurique, também disse que é sim possível que o presidente do STF decida dessa maneira, cassando a decisão do colega.
"A decisão de Fux é de alguém preocupado com uma eventual crise de credibilidade do Poder Judiciário. Como autoridade máxima do Poder Judiciário brasileiro penso que é bem procedente a sua preocupação nesse sentido e desta forma que agiu", diz Maurique.
"Acredito que haverá de convocar uma reflexão do Poder Judiciário e também do Ministério Público sobre o tema e poderão ser criados, via CNJ [Conselho Nacional de Justiça] e CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público], instrumentos e caminhos para isso."
Já o advogado Luiz Henrique Machado considera que Fux decidiu de maneira equivocada.
"Não concordo [com a decisão]. O presidente do Supremo não pode ter poder revisional sobres as decisões dos relatores nas respectivas turmas. Quem detém o poder de cassar a decisão do relator é o órgão colegiado", diz Machado.
"Concorde ou não com decisão do ministro Marco Aurélio, ela deveria ser cumprida. Decisão monocrática revogando liminar concedida por outro ministro, nessas circunstâncias, só fomenta a insegurança jurídica e desacredita o tribunal."
O advogado Marco Aurélio de Carvalho diz que o presidente do STF jogou para a plateia. "Recebemos com surpresa e perplexidade a medida tomada pelo ministro Luiz Fux", diz Carvalho.
"Aumenta ainda mais a insegurança e o ativismo judicial que tanto combatemos. Típica 'jogada' para a plateia, o que incensa ainda mais as hordas ávidas por justiçamentos."
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta