Ernesto Araújo deixou o comando do Ministério das Relações Exteriores nesta segunda-feira (29), depois de ter sido alvo de uma fritura por parte de deputados e senadores que demandavam uma mudança na política externa promovida pelo Itamaraty.
O agora ministro demissionário foi um dos principais expoentes da chamada ala ideológica do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) e acumulou um legado de polêmicas, declarações controversas e uma gestão considerada ineficaz em vários aspectos.
Em abril do ano passado, Ernesto publicou um texto em seu blog pessoal no qual afirmava, entre outros tópicos, que a pandemia de Covid-19 poderia fazia parte de um "projeto globalista" que seria o "novo caminho do comunismo" – à época, o vírus matara 180 mil pessoas em todo o mundo.
O ex-ministro ainda usou o neologismo "comunavírus" para se referir a um suposto "vírus ideológico" que se sobrepõe ao coronavírus e faz "despertar para o pesadelo comunista". Ernesto também condenou as medidas de contenção, alegando que elas faziam parte de um projeto de "emancipação comunista" que teria encontrado na pandemia "um tesouro de opressão".
No mesmo texto, ele comparou as restrições aos campos de concentração nazistas. Ao ser criticado por lideranças judaicas, que exigiram pedidos de desculpas, Ernesto as ignorou e criticou a cobertura da imprensa sobre o caso.
Em outubro do ano passado, durante uma cerimônia de formatura do Instituto Rio Branco, a escola de formação dos diplomatas, Ernesto disse: "Se isso [a atuação do Brasil na política externa] faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária".
A fala ocorreu após uma série de queixas do agora ex-ministro contra o multilateralismo e o que ele chamou de "covidismo", além de críticas a "um marxismo sem Deus" e ao globalismo slogan político usado por movimentos populistas de direita para denunciar uma suposta perda de identidade nacional.
Segundo Ernesto, apenas Jair Bolsonaro e Donald Trump haviam falado sobre liberdade na Assembleia Geral da ONU, que ocorrera um mês antes na ocasião, o brasileiro mentiu sobre sua gestão na pandemia e sobre suas políticas ambientais, e o americano defendeu que a China fosse responsabilizada pela Covid.
Nesse contexto, o ex-chefe do Itamaraty afirmou que "talvez seja melhor ser esse pária deixado ao relento, do lado de fora, do que ser um conviva no banquete do cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e dos semicorruptos".
Ernesto foi convidado pelos senadores para explicar os esforços da pasta que comandava para obter vacinas contra o coronavírus. Na sessão, tornou-se alvo de críticas duras contra sua gestão e de pedidos para que deixasse o cargo "para ajudar a salvar vidas". Ao se defender, o ex-chanceler se emocionou e chegou a ficar com a voz embargada, afirmando que fez de tudo para ajudar o Brasil durante a pandemia.
Uma semana depois, publicou parte do conteúdo de uma conversa privada que teve com a senadora Katia Abreu (PP-TO), presidente da Comissão de Relações Exteriores da Casa, insinuando que a pressão que sofrera para deixar o ministério era resultado do lobby chinês sobre os congressistas.
A reação dos senadores gerou uma nova onda de críticas a Ernesto, acusado de cruzar "uma linha que não deveria ser ultrapassada" ao agredir "gratuitamente e desnecessariamente" o Senado. O ex-ministro também foi chamado de "marginal" e descrito por Katia Abreu como "alguém que insiste em viver à margem da boa diplomacia, à margem do equilíbrio e à margem do respeito às instituições".
Ernesto passou cerca de dez meses sem estabelecer diálogos com a embaixada da China no Brasil. O corte se deu depois de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) fazer críticas públicas ao país asiático e receber respostas duras do embaixador Yang Wanming.
No primeiro caso, em março de 2020, o filho do presidente comparou a Covid-19 ao acidente nuclear de Tchernóbil, em 1986, insinuando que, assim como fez a União Soviética à época, a China poderia estar escondendo informações e deveria ser responsabilizada pela disseminação da doença. Yang reagiu dizendo que Eduardo fez um "insulto maléfico" e que o deputado teria contraído um "vírus mental".
Em novembro, Eduardo voltou a criticar a China, associando o país à espionagem de dados por meio de tecnologias da rede 5G. Em nota, a embaixada chinesa manifestou "forte insatisfação e veemente repúdio" contra a declaração do deputado. Ernesto então tomou as dores do filho do presidente e rompeu relações com Yang, inclusive repreendendo a embaixada pela reação que ele considerou "ofensiva e desrespeitosa".
O ex-chanceler ainda convenceu Bolsonaro a pedir a Pequim que substituísse seu embaixador no Brasil após as duas querelas. Ambas as solicitações foram ignoradas.
Mais de 300 diplomatas publicaram uma carta em que pediam a saída de Ernesto. O documento acusava a política externa atual de causar graves prejuízos para as relações internacionais e à imagem do Brasil, citando "condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo com os códigos mais elementares da prática diplomática".
Os autores da carta não puderam se identificar devido à Lei do Serviço Exterior, que os impede de "manifestar-se publicamente sobre matéria relacionada com a formulação e execução da política exterior do Brasil sem anuência prévia.
Durante uma visita a Israel no início de março, Ernesto protagonizou um episódio que acabou viralizando nas redes sociais. Ao ser chamado para posar para uma foto com seu homólogo israelense, Gabi Ashkenazi, ele foi alertado pela chancelaria do país para que pusesse uma máscara. Ernesto respondeu: "Oh, yes" e colocou a proteção.
Em sua fala no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em fevereiro, Ernesto fez críticas às restrições adotadas para conter a pandemia e à censura em redes sociais. O ex-ministro relativizou as medidas de contenção e disse que "não se pode aceitar um lockdown do espírito humano".
O discurso, junto ao da ministra Damares Alves, foi classificado por entidades de defesa dos direitos humanos como "descolado do resto do mundo".
Ernesto defendeu a atitude de Bolsonaro depois de o presidente mandar a imprensa enfiar no rabo latas de leite condensado. A declaração ocorreu após o líder brasileiro ser questionado sobre gasto de R$ 1,8 bilhão do governo federal em alimentos e bebidas no ano de 2020.
Segundo o ex-ministro, esse é o estilo do presidente. Questionado durante entrevista à rádio Jovem Pan, Ernesto afirmou que não achou infantil o fato ter dado risada após a fala de Bolsonaro ou endossado o grito de MI-TO! MI-TO! que veio em seguida.
Em janeiro, o vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB) disse que Ernesto poderia ser um dos substituídos na reforma ministerial. Na ocasião, a fala do general foi considerada uma forma de externar o sentimento que já dominava parte do setor militar e dos técnicos do Itamaraty que defendiam a saída do ministro.
Bolsonaro, à época, saiu em defesa de Ernesto e fez questão de afirmar que a escolha de ministros caberia somente a ele e que não precisava de "palpiteiros" em seu governo.
Ernesto publicou mensagens no Twitter nas quais condenava o ataque ao Congresso americano por apoiadores extremistas do ex-presidente Donald Trump. Segundo ele, porém, era necessário "reconhecer que grande parte do povo americano se sente agredida e traída por sua classe política e desconfia do processo eleitoral".
O ex-ministro ainda se referiu aos vândalos como "cidadãos de bem" e sugeriu "investigar se houve participação de elementos infiltrados" no episódio. Junto com a reação de Bolsonaro, para quem o Brasil vai "ter problema pior que os EUA se não instituir o voto impresso para 2022, a declaração de Ernesto foi vista como criadora de possíveis novos obstáculos para a relação do governo brasileiro com Joe Biden.
Depois que o Senado argentino aprovou, em dezembro, o direito de a mulher optar pelo aborto até a 14ª semana de gestação, Ernesto foi ao Twitter e, sem citar diretamente o país vizinho, fez críticas à decisão histórica. O ex-ministro afirmou que "o Brasil permanecerá na vanguarda do direito à vida e na defesa dos indefesos, não importa quantos países legalizem a barbárie do aborto indiscriminado, disfarçado de 'saúde reprodutiva' ou 'direitos sociais'".
Ernesto é apontado como um dos responsáveis pelo fracasso na negociação entre os governos brasileiro e indiano para a compra de um lote de vacinas contra o coronavírus. O avião que buscaria os imunizantes estava pronto para decolar no Recife enquanto o chanceler fazia um último apelo a seu homólogo indiano para a liberação de mais de dois milhões de doses. O pedido, no entanto, foi negado.
Quando a Assembleia Geral da ONU aprovou, em abril do ano passado, um acordo de cooperação internacional que visava garantir o acesso global a medicamentos, vacinas e equipamentos médicos para enfrentar a pandemia de coronavírus, só o Brasil na gestão diplomática de Ernesto, os EUA e outros 12 dos 193 países-membros da entidade não apoiaram a resolução.
Tecnicamente, o governo brasileiro deixou de patrocinar a medida, mas não apresentou objeções. Na prática, entretanto, deixar de expressar uma posição clara sobre uma resolução demonstra falta de entusiasmo pela causa e, à época, a omissão foi interpretada como uma aceitação de mau grado.
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