SÃO PAULO - Juristas ouvidos pela reportagem consideram que a decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de vetar novos atos políticos contra ou a favor de candidatos ou partidos políticos no Lollapalooza confunde propaganda eleitoral com liberdade de expressão.
O ministro Raul Araújo classificou como propaganda eleitoral as manifestações políticas das cantoras Pabllo Vittar e Marina - antes à frente da banda Marina and The Diamonds - no Lollapalooza e determinou multa de R$ 50 mil para a organização do festival se houver outras. Procurados, os responsáveis pelo evento não se manifestaram até o momento da publicação.
A decisão liminar foi tomada neste sábado e acata parcialmente um pedido da campanha do presidente Jair Bolsonaro, do PL, feito na manhã do mesmo dia. Os advogados do PL haviam solicitado a condenação do festival por propaganda eleitoral antecipada, o que não aconteceu.
Segundo Fernando Neisser, presidente da Comissão de Direito Político e Eleitoral do IASP, o Instituto dos Advogados de São Paulo, a decisão faz uma leitura equivocada da lei, reformada recentemente para dar mais liberdade ao debate público.
"Criticar um governante em exercício ou cantar o nome de um possível candidato não são atos de propaganda antecipada ilegal, pois não há pedido explícito de voto nem uso de meio proibido pela lei", afirma ele.
O professor de direito constitucional Roger Stiefelmann Leal, docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, declara que manifestações individuais ou coletivas sobre partidos, pré-candidatos e propostas merecem, como regra geral, proteção do direito e da justiça, sejam elas elogiosas ou críticas.
Segundo ele, limitar a manifestação da opinião política de pessoas e grupos, seja em eventos culturais ou nas redes sociais, por exemplo, sob o fundamento de propaganda eleitoral antecipada, assume o risco de sufocar aspectos essenciais do regime democrático.
"A todos, de Pabllo Vittar a Allan dos Santos, é assegurado o direito de expressar democraticamente opiniões críticas sobre candidaturas, partidos, governos e decisões de agentes públicos. Fazer propaganda eleitoral e expressar opiniões pessoais sobre política não merecem ser confundidos, sob pena de identificar a aplicação da lei eleitoral a condenável ato de censura", diz.
Antes de deixar o show, Pabllo desceu no meio da plateia e caminhou com uma bandeira com o rosto do ex-presidente Lula. O ato rendeu gritos a favor do petista e de críticas a Bolsonaro, que se misturaram com aplausos à artista.
Durante o show, a cantora já havia feito "L" com as mãos, em referência ao ex-presidente.
Já Marina xingou Bolsonaro e o mandatário russo Vladimir Putin. "Existe um momento para músicas pop e um momento para músicas políticas. Foda-se, Putin, foda-se, Bolsonaro, estamos cansados dessa energia", disse.
Na decisão que proíbe novas manifestações, o ministro do TSE diz que os atos estão em desconformidade com o disposto na legislação eleitoral, que veda propaganda político-partidária neste período.
"De uma apreciação das fotografias e vídeos colacionados aos autos, percebe-se que os artistas mencionados fazem clara propaganda eleitoral em benefício de possível candidato ao cargo de presidente da República, em detrimento de outro possível candidato, em flagrante desconformidade com o disposto na legislação eleitoral, que veda, nessa época, propaganda de cunho político-partidária em referência ao pleito que se avizinha", diz Araújo na decisão.
Vera Chemim, advogada constitucionalista e mestre em administração pública pela Fundação Getulio Vargas, diz que não é correto classificar como propaganda eleitoral os atos realizados por Pabllo e Marina, já que não envolveram pedido explícito de voto, menção à candidatura, ou exaltação às qualidades pessoais dos candidatos.
Ela afirma que o eleitor pode usar, a qualquer tempo, bandeiras, broches, adesivos, ou adornos semelhantes como forma de demonstrar suas preferências pelo partido político ou candidato. "Conforme se pode depreender da legislação apresentada [Resolução nº 23.610/2019 do TSE], o uso de bandeiras é permitido em qualquer tempo, desde que o eleitor não exalte as qualidades pessoais do pré-candidato", diz.
"Uma [Marina] xingou o Bolsonaro. Isso é liberdade de expressão, não é propaganda. Se ela tem antipatia ou simpatia, isso não tem nada a ver. E, quanto a Pabllo Vittar, se ela pegou só a bandeira e não falou nada além disso, não configura propaganda eleitoral antecipada. Se ela mencionou o Lula, se ela exaltou alguma qualidade pessoal, aí seria."
Ainda, segundo Daniel Sarmento, professor de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, essa decisão do TSE pode ser vista como um enquadramento contrário à própria democracia. "Calar a voz da sociedade, a voz dos artistas num tema dessa importância, um tema político, isso é atingir o próprio âmago da democracia", diz.
Sarmento também concorda que essa ação foi equivocada. "É um show de música, as pessoas não estão ali por conta de propaganda eleitoral ou de eleição. Ali foi exercício de liberdade de expressão." Segundo o professor, essa decisão gera um efeito de censura, já que, quando há esse movimento de proibir a manifestação de pensamentos, ocorre danos, não só àquele que deseja expressar sua opinião, como também estende esse dano a todo o público.
"A liberdade de expressão se dá, não só em proveito do falante, mas no proveito de toda a sociedade, o proveito de todos aqueles que a partir daquelas ideias, opiniões e pontos de vista, poderiam formar as suas próprias opiniões", diz Sarmento.
Segundo Aline Akemi, sócia do escritório Cesnik, Quintino e Salinas Advogados, os atos das cantoras, Pabllo Vittar e Marina, poderiam ser considerados propaganda eleitoral se o evento tivesse esse intuito. Ela cita como exemplos os showmícios - apresentações artísticas em eventos de campanhas eleitorais.
Akemi diz que fica uma pergunta. "Como é que a própria produtora [Lollapalooza] vai censurar os artistas? Essas questões estão tão no cerne do debate que não me espantaria uma reação à decisão do TSE ou o próprio público hoje chamasse ou começasse a se manifestar."
Sobre os próximos passos desse imbróglio, Akemi acredita que a parte prejudicada, neste caso o Lollapalooza, vai recorrer à decisão.
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