Em live transmitida pelo YouTube e pelo Instagram na noite desta quarta-feira (22), o delegado Carlos Alberto da Cunha, 43, conhecido como Da Cunha, admitiu ter encenado a ação em que ele invade um cativeiro e interrompe um sequestro na favela da Nhocuné, em julho de 2020.
A simulação foi registrada em vídeo e, depois, distribuída a emissoras de TVs e veiculada nas redes sociais do policial.
De acordo com o delegado, sua intenção era fazer uma reprodução simulada dos fatos, como prova para o processo.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, porém, essa explicação não faz sentido, porque reproduções simuladas são feitas exclusivamente por peritos, a pedido do delegado, para tirar dúvidas sobre a dinâmica de um crime. Não ocorrem em prisões em flagrante.
"Foi uma decisão minha, no momento. A 'cana' [prisão] foi dada, eu que quis novamente registrar a cana. Isso acontece muito em inquérito de homicídios, numa série de inquéritos. Eu queria, o que nós queríamos, é que a população do Brasil entendesse o que é um tribunal do crime", disse o delegado paulista, afastado do cargo em julho deste ano.
A admissão da farsa desagradou parte dos seguidores do delegado nas redes sociais. Alguns passaram a criticar o policial nas mensagens enviadas ao vivo no chat do Youtube. Nos vídeos distribuídos em seu canal, Da Cunha jamais tinha informado que se tratava de uma simulação.
"Meeeeeeeeeeu, foi fakeeee, então! Palhaçada com seus seguidores. Como acreditar em você? Lamentável", disse seguidor identificado como Jean Carlos.
"A Folha tinha razão", disse Welliton Cosme.
Conforme revelou o jornal Folha de S.Paulo, depoimentos em poder do Ministério Público de São Paulo, entre eles da vítima e policiais civis diretamente ligados a ação, sustentam que o delegado afastado decidiu devolver a vítima ao poder do sequestrador para que a ação fosse filmada, como se tivesse sido Da Cunha o responsável pela prisão.
"Acreditando que realmente se tratava de prova policial, aceitou e foi deixado pelos policiais novamente dentro da casa com o traficante. [...] Acha que isso foi uma falha dos policiais, pois foi deixado no mesmo local que uma pessoa perigosa [que] poderia ter pego uma faca para lhe ferir", disse a vítima (nome preservado), conforme trecho do depoimento.
Os vídeos de operações oficiais da Polícia Civil postados por Da Cunha nas redes sociais chamaram a atenção do Ministério Público de São Paulo, que instaurou inquérito civil para apurar se o delegado ganhou dinheiro dessa maneira, o que seria irregular.
De acordo com a Promotoria, caso confirmada, a monetização desse tipo de conteúdo pode configurar enriquecimento ilícito, porque os policiais não podem, em tese, usar cargos públicos nem empregar bens e materiais da Polícia Civil para benefício próprio, de acordo com a lei de improbidade administrativa.
Em outras oportunidades, ele negou que tenha monetizado vídeos de operações policiais e disse que só fez isso após ser afastado de suas funções.
Na conversa com os seguidores durante a live, em resposta a reportagem publicada pela Folha de S.Paulo (na qual ele não quis se manifestar), Da Cunha também admitiu que o cativeiro foi estourado por outro policial, Patrick. Para ele, o mais importante foi o salvamento da vítima, que foi real.
"Ele está vivo, bem até hoje, graças ao policial Patrick, que foi o primeiro a ver, foi o primeiro que viu a cena, [graças] aos policiais Rogério, Ronald, Denis, a minha equipe toda que estava ali. A gente foi, derrubou e, depois, nós fizemos uma reprodução simulada da prova, nos termos do Código de Processo Penal. Já devem querer encher o saco por causa disso, a defesa já está feita publicamente. Assunto encerrado", afirmou o delegado.
Na live, Da Cunha fez questão de citar mais de uma vez o delegado Denis Ramos de Carvalho, ex-assistente dele no Cerco, bem como o chefe dos investigadores, Renato Araújo de Lima. Os dois foram ouvidos formalmente e confirmaram algumas fraudes, entre as quais a do cativeiro.
"Se eu não estou aqui defendendo o Renato e o Denis, o Brasil inteiro vai falar que os dois são dois alcaguetas, dois 'X9', que depois que eu fiquei famoso, ficaram com ciúmes e estão querendo me ferrar. Isso é a maior mentira do mundo. Eles são dois grandes amigos, nunca fizeram nada de errado comigo, nunca me traíram e ainda estão aturando um monte de buchas só porque eu fui perseguido", disse.
Ao se dizer perseguido, Da Cunha provavelmente se refere ao fato de a Corregedoria ter aberto uma série de procedimentos contra ele, a maioria por suposto uso indevido das redes sociais. Depois que foi afastado, ele pediu licença sem vencimento e filiou-se ao MDB para disputar um cargo eletivo. Diz querer ser governador.
Durante a live de quarta-feira, embora tenha sido cobrado no chat várias vezes pelos seguidores, o delegado não falou de outras operações cuja veracidade está sendo posta em xeque, como a prisão do chefe do PCC conhecido como "Jagunço do Savoy".
Policiais afirmaram, em depoimento, que Da Cunha nunca capturou esse criminoso, apesar de ter feito vídeos sobre tal prisão.
A prisão de Jagunço do Savoy rendeu mais de 30 milhões de visualizações e é apontada pelos colegas como o material que transformou Da Cunha em celebridade.
A advogada criminalista Roselle Soglio diz que a reprodução simulada é feita para dirimir dúvidas. Quando, por exemplo, o réu diz uma coisa e testemunhas dizem outra. "Isso que foi feito [por Da Cunha] pode ser qualquer coisa, mas não é uma reprodução simulada. Isso não existe no Código de Processo Penal e, aliás, só pode ser feito pelo perito", disse.
Falando de forma genérica, e não do caso específico, o delegado Ronaldo Sayeg, da divisão antissequestros, disse que, geralmente, as reproduções simuladas são feitas em casos de sequestros com morte ou quando há uma dúvida muito importante sobre a dinâmica do crime.
"A reprodução simulada dos fatos é feita com os peritos. Por isso é preciso agendar com o Instituto de Criminalística, ver quais testemunhas vão participar, se o investigado pretende participar. A oficial é com os peritos. São eles que elaboram os atos", disse.
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