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'Desmemória em relação à Covid é muito perigosa', diz médica capixaba da Fiocruz

'Desmemória em relação à Covid é muito perigosa', diz médica capixaba da Fiocruz

Especialista está preocupada com a desmemória da sociedade em relação à Covid-19 e alerta para que brasileiros não se esqueçam do que viveram durante a pandemia

Publicado em 18 de outubro de 2022 às 12:53

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A pneumologista e pesquisadora da Fiocruz, a capixaba Margareth Dalcolmo, 67anos , diz estar preocupada com a desmemória da sociedade brasileira em relação à pandemia Covid-19 e afirma que "não temos o direito" de esquecer o que passamos.

Margareth Dalcolmo se formou em 1978 pela Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (Emescam), e hoje atua como pesquisadora na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)
Margareth Dalcolmo atua como pesquisadora na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). (Revista Radis, Fiocruz)

"Fico triste que a memória tão dura da Covid-19, que deixou tantas cicatrizes, tanto luto, tenha ficado esquecida. Essa desmemória é muito perigosa. Ela representa uma espécie de negação", diz a médica, autora do livro "Um Tempo Para Não Esquecer" (Editora Bazar do Tempo), sobre a pandemia.

A médica diz ter ficado surpresa com a eleição de parlamentares que, durante a pandemia, agiram contra o conhecimento científico, como o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, o segundo deputado federal mais votado do Rio de Janeiro.

No próximo dia 21, Dalcolmo toma posse da cadeira de número 12 na Academia Nacional de Medicina. É a quinta mulher na instituição fundada em 1829, sob o reinado do imperador dom Pedro 1º.

Entrevista com Margareth Dalcolmo

PERGUNTA - A sra. diz que a pandemia é um tempo que não pode ser esquecido. Mas o tema praticamente desapareceu do dia a dia das pessoas. Já é hora de esquecer?

  • MARGARETH DALCOLMO - A mim me preocupa muito essa desmemória. Quando vemos parlamentares eleitos, que tiveram participação nociva à sociedade brasileira, que desacreditaram conhecimentos sólidos sobre os cuidados não farmacológicos, como distanciamento físico e uso de máscaras, isso me causa surpresa. Fico triste que a memória tão dura da Covid-19, que deixou tantas cicatrizes, tanto luto, tenha ficado esquecida. Essa desmemória é muito perigosa. Ela representa uma espécie de negação. Como médica, eu reconheço que, quando a gente passa por uma situação de extremo sofrimento, tende a aguardar aquela cicatriz e se esquecer daquilo. Porém, a pandemia de Covid é de ordem coletiva.

P - A gestão de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde ficou marcada pela crise da falta de oxigênio em Manaus e pelo incentivo do uso da cloroquina para prevenir a Covid. No entanto, ele foi o segundo deputado federal mais votado do Rio de Janeiro. Já o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, que atuou em favor da ciência, não conseguiu vaga no Senado. Como avalia essas escolhas do eleitor?

  • MD - O Mandetta foi candidato pelo Mato Grosso do Sul, o estado dele, e já havia um recuo histórico desde saída dele do ministério. A força do agro é muito grande no Centro-Oeste, e a ex-ministra Tereza Cristina mostrou, durante sua atuação no ministério, muita eficiência no que ela fazia. Então, já era esperado [o resultado].  Agora, o que surpreende é que um estado como o Rio de Janeiro, que sofreu tanto, que teve a mais alta taxa de mortalidade pela Covid, tenha eleito o general Pazuello, que foi um ministro tão controverso, que teve uma passagem desastrosa pelo Ministério da Saúde.

P - O que podemos esperar da pandemia de Covid daqui para frente?

  • MD - Primeiro, a pandemia ainda não acabou. Nós precisaríamos resgatar esses milhares de brasileiros que não foram vacinados de maneira integral, com as doses padrão e de reforço, e, sobretudo, vacinar as nossas crianças. Fomos um dos países onde mais morreram crianças abaixo de cinco anos. Mas acho que não teremos uma outra onda pesada de Covid. Talvez teremos ainda umas microepidemias de subvariantes de maneira muito heterogênea. Não será como a gripe espanhola, que teve uma segunda onda ainda mais trágica do que a primeira.

P - A sra. acredita que teremos que tomar vacinas anuais para prevenir a Covid?

  • MD - Não creio. Nós teremos uma segunda geração de vacinas. Todas as vacinas que recebemos até hoje foram construídas com a proteína spike da cepa ancestral [de Wuhan, na China]. As vacinas de segunda geração estão sendo construídas com a proteína spike da cepa ômicron, que é a que circula no mundo. E temos a perspectiva de vacinas nasais, o que faz todo o sentido para um vírus que entra pela via aérea superior.

P - Há médicos que não se vacinaram contra a Covid e que também não recomendam que seus pacientes o façam. Da mesma forma, muitos médicos defenderam medicamentos sem eficácia para a Covid. Isso surpreendeu?

  • MD - Mais do que me surpreender, isso me decepcionou. Me feria pessoalmente cada vez que via um colega [negacionista]. Qual foi o grande "breakthrough" [avanço] da ciência das últimas duas décadas? Sem dúvida nenhuma foram as vacinas contra a Covid-19.  O Brasil é um país paradigmático porque foi o que mais colocou voluntários nos estudos, mas não comprou a vacina a tempo. Em outubro de 2020, dez países já tinham comprado 75% de todas as vacinas que estavam sendo produzidas. E o Brasil não era um eles. Nós poderíamos ter começado a vacinação em dezembro de 2020, quando o Reino Unido começou, não em janeiro [de 2021]. Nós poderíamos ter salvado mais vidas. Mas ficaram com aquele discurso da imunidade de rebanho, que a gente sempre disse que era equivocado, e Manaus mostrou, de maneira dramática e desnecessária, que estávamos certos. Quatro meses depois do primeiro pico epidêmico, ninguém mais tinha imunidade, não teve lockdown lá, não teve nada, a cepa gama nasceu lá e foi aquela desgraceira toda.

P - Por que a cobertura da vacinação infantil contra a Covid está tão baixa?

  • MD - Há um descrédito, as famílias brasileiras, sobretudo as de baixa renda, foram contaminadas por um discurso nocivo de desinformação, o que contraria a cultura brasileira de extrema adesão e confiança às vacinas. Eu tenho 40 anos de formada e cada vez que chega um pai ou uma mãe que mostra, com orgulho, aquela carteirinha toda preenchida, é uma felicidade. Isso não pode ser colocado em risco como foi agora. O Brasil ganhou o prêmio por vacinar e quase eliminar o sarampo em 2016 e o perdeu em 2019. O Brasil erradicou a pólio e estamos sob risco de voltar a ter pólio, com uma cobertura vacinal que não passa de 67%. Isso é inadmissível.

P - A sra. foi infectada por Covid no início da pandemia e tem escrito sobre luto. Como lidou com isso?

  • MD - Na pandemia eu perdi amigos, minha irmã quase morreu. Eu fiquei doente no fim de abril de 2020, me contaminei trabalhando. Tive medo de morrer, ficava esperando a falta de ar chegar, expressei em um caderninho todos os meus desejos, cheguei a fazer uma procuração, disse tudo o que eu queira que fosse feito caso caso eu fosse intubada, o que, felizmente, não aconteceu. Tem muita gente ainda vivendo esse luto. Gente que o pai, a mãe, o cônjuge internou e não voltou mais. A vida foi interrompida sem preparo. Eu vi muita coisa. Gente que mudou testamento, gente que quis formalizar a união estável. Nós não temos o direito de esquecer tudo o que vivemos na pandemia e ainda estamos vivendo.

P - A pandemia também trouxe um impacto em outras doenças que ficaram sem controle. A sra. é especialista em tuberculose. O que tem visto no consultório?

  • MD - No câncer e nas doenças cardiovasculares, a tragédia foi completa. Vamos perder ainda muitos brasileiros de câncer nos próximos dois anos por falta de diagnóstico ou retardo no tratamento. Nas doenças ditas endêmicas transmissíveis, e a tuberculose é um exemplo muito paradigmático, nós também tivemos um impacto ruim. Tivemos 40% a menos de testes moleculares aplicados para diagnóstico. Muitos serviços deixaram de funcionar, as pessoas ficaram sem acesso a remédios, houve tratamento interrompido. Vamos ter um boom de casos nos próximos anos.

P - Como a sra. tem visto esses cortes no orçamento de 2023 das áreas como saúde, ciência e educação?

  • MD - Como médica que atende e faz pesquisa, como alguém que trabalha numa instituição pública da relevância da Fiocruz, eu vejo com muita preocupação contra os cortes que estão sendo feitos contra o nosso futuro. Não é só cortar a utopia, os nossos sonhos, é cortar o futuro objetivamente. Na medida que você deixa de investir na geração que vai nos suceder, qualquer corte ciência, tecnologia e inovação é catastrófico. Somos um país que envelhece. Em 2040 teremos 15% da população com mais de 60 anos. Temos que ter projetos claros, conhecimento gerados para os cuidados de uma população idosa. Mesmo com todas as adversidades logísticas, operacionais e políticas que enfrentamos durante a pandemia de Covid-19, o Brasil conseguiu ser o décimo país em produção científica sobre o assunto. Produzimos o tempo todo sob uma tensão permanente entre a retórica oficial e a nossa, da ciência. A sociedade brasileira tem que entender que o que está em jogo não é o interesse de grupos de pesquisadores, é uma questão de Estado. Deixar de investir nessa área nos coloca muito para trás dessa competição. O Brasil está padecendo de um êxodo de cérebros preciosos porque não encontram aqui condições de exercerem suas funções. Deveria fazer um movimento de repatriar os cérebros que foram embora.

RAIO-X

MARGARETH DALCOLOMO, 67

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Doutora em medicina pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), é pesquisadora sênior da Fiocruz e foi eleita presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia para o período de 2022 a 2024. Integra o grupo de peritos para aprovação de medicamentos essenciais da OMS e faz parte do comitê regional de consultores do Banco Mundial para projetos de saúde na África Subsaariana em tuberculose e doenças respiratórias ocupacionais. Tem mais de cem artigos científicos publicados no Brasil e no exterior. É autora da obra "Um Tempo Para Não Esquecer – A visão da ciência no enfrentamento da pandemia do coronavírus e o futuro da saúde" (editora Bazar do Tempo).

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