Raiva, malária, dengue, chikungunya, zika, oropouche, mayaro, encefalite de Saint Louis, leptospirose, hanseníase, Chagas, filariose. Essas são algumas das doenças que tiveram origem em animais e que já desencadearam casos, surtos ou epidemias relevantes na Amazônia e fora dela.
Se a biodiversidade da floresta amazônica é uma potencial fonte de doenças, por outro lado, ela impede que elas saiam do controle, mostram as conclusões de um estudo recente.
O trabalho foi conduzido por Joel Henrique Ellwanger, da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), que revisou centenas de pesquisas sobre a relação entre zoonoses (doenças transmitidas de animais ao homem) e desequilíbrios ambientais.
"Estamos lançando um alerta com esse artigo", diz o cientista, que vê "riscos elevados" de surgimento e reemergência de doenças infecciosas a partir da Amazônia.
A maioria das doenças infecciosas (60%) originou-se de patógenos de animais que saltaram para os humanos (fenômeno conhecido como "spillover", em inglês), como o Sars-CoV-2.
O IEC (Instituto Evandro Chagas), de Belém, isolou 180 vírus diferentes da Amazônia, dos quais 116 eram novos para ciência, 37 associados a doenças em humanos e nove com potencial de surtos e epidemias importante no país, como dengue, zika, chikungunya, febre amarela, encefalite Saint Louis, febre do Nilo Ocidental, mayaro, oropouche e rocio.
A relação entre o surgimento dessas doenças e alterações ambientais está bem estabelecida na ciência, afirma Pedro Vasconcelos, virologista aposentado do IEC.
O contato inicial do homem com o patógeno, porém, é insuficiente para produzir uma epidemia ou pandemia. São necessárias condições sociais, demográficas, biológicas (como alta transmissibilidade) e ambientais, pondera Ellwanger.
Ambientes com alta biodiversidade "diluem" as espécies de alto risco de zoonoses, o chamado "efeito de diluição". Mosquitos, por exemplo, podem ser comidos por uma variedade de predadores nesses ambientes.
Nesse sentido, um estudo da USP (Universidade de São Paulo) mostra que a redução da floresta diminuiu a diversidade geral dos mosquitos em áreas da Amazônia permitindo a dominância da espécie transmissora da malária.
Abertura de estradas são um importante vetor do desmatamento e da redução da biodiversidade, resultando em explosões de doenças, como na construção da rodovia Transamazônica, durante a ditadura, com surtos de leptospirose, leishmaniose, doença de Chagas, malária e mayaro.
Dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) mostram um aumento expressivo do desmatamento na Amazônia nos últimos quatro anos. Cerca de 95% dos desmatamentos na região ocorrem a uma distância de 5,5 km em cada lado da estrada, segundo o pesquisador Carlos Nobre, da USP.
Outro estudo da USP mostrou que a febre amarela se dispersa mais rapidamente nas estradas adjacentes à floresta e que os blocos de floresta reduzem essa dispersão. Pesquisadores gaúchos apontaram ainda que estradas funcionam como túneis de vento transportando mosquitos da doença.
A construção das hidrelétricas de Samuel (Rondônia) e Tucuruí (Pará), na década de 1980, produziu enxames de mosquitos, segundo pesquisas de Philip Fearnside, do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia).
Em Tucuruí, os mosquitos Mansonia brotavam das plantas aquáticas na superfície dos reservatórios. O inseto transmite o verme da filariose (ou elefantíase) ainda presente na Amazônia. O fenômeno chegou a provocar migração significativa de indígenas parakanãs e outros moradores, escreveu Fearnside.
"Eu estava em Tucuruí à época. Era uma loucura, os pesquisadores do Inpa chegavam a contar 600 picadas de mosquitos, por hora, em uma pessoa", relembra Fearnside, que atualmente estuda os impactos ambientais da BR-319 na Amazônia.
Na Amazônia peruana, um estudo internacional mostrou que o vetor da malária (Anopheles darlingi) foi capaz de picar 278 vezes mais nas regiões desmatadas.
No final dos anos de 1980, Rondônia chegou a ser conhecida como "capital mundial da malária" em razão da epidemia causada pela depredação da floresta. Registraram-se até 300 mil casos por ano, segundo pesquisa.
O desmatamento também impacta microrganismos dos solos, aumentando seus genes de resistência a antibióticos, tornando-os potenciais ameaças à saúde global e segurança alimentar, concluiu estudo brasileiro.
A caça na Amazônia expõe humanos ao contato direto com fluidos e vísceras de animais silvestres. Pesquisa mostrou que 80% dos habitantes dos centros urbanos da Amazônia consomem carne selvagem, oriundas de mercados locais (80%) ou caçada por familiares (15%), ultrapassando 10 mil toneladas de carne por ano.
Nas feiras tradicionais, como a Feira da Panair, em Manaus, animais e frutas silvestres são expostos a milhares de pessoas cotidianamente. É comum o hábito de manipular e cheirar os peixes para avaliar a qualidade. O contato é intenso, semelhante ao que ocorre em outras partes do mundo, diz o biólogo do Inpa Adalberto Luis Val.
Em 2021, a ingestão de peixes contaminados provocou a "doença da urina preta" (síndrome de Haff) em regiões amazônicas. Uma das hipóteses é que ela seja causada por vírus, diz Val.
O consumo de tatus levou a surtos e casos de hanseníase no Pará e micose sistêmica ("doença do tatu") no Ceará e no Piauí.
A vigilância sanitária é deficiente na Amazônia, avalia Adalberto Luis Val. São necessários pesquisadores qualificados e tecnologia de ponta para identificar patógenos. O Brasil destina à Amazônia cerca de 3% do total investido em ciência e tecnologia, para uma área de 60% do território do país, lamenta o pesquisador.
A veterinária Alessandra Nava atua na linha de frente das zoonoses amazônicas pela Fiocruz Amazônia. Ela chama atenção para o aumento de casos de raiva em humanos na região, "altamente correlacionados ao desmatamento", diz.
O desmatamento abre ainda caminho para o gado bovino que, por sua vez, atrai morcegos hematófagos, transmissores da raiva. O resultado é que as mordeduras de morcegos estão aumentando em humanos e no gado, segundo levantamento de sua equipe.
O projeto Planeta em Transe é apoiado pela Open Society Foundations.
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