Uma das marcas da eleição de João Doria (PSDB) em 2018 para o Governo de São Paulo, a dobradinha "BolsoDoria" - que estimulava o voto no tucano e no então presidenciável Jair Bolsonaro (à época no PSL, hoje sem partido) - virou uma assombração para o governador.
Após romper politicamente com Bolsonaro e reivindicar o posto de opositor dele com vistas às eleições de 2022, Doria passou a ser cobrado pela aparente incoerência na mudança de posicionamento e a ter que lidar com críticas pela aproximação forçada (mas crucial) para a conquista do pleito de 2018 em um acirrado segundo turno.
Os ataques, antes mais comuns na boca de opositores do paulista, passaram a ser vocalizados também por líderes do PSDB no início deste ano, depois de uma articulação de Doria visando a assumir o comando nacional da legenda e se firmar como o candidato tucano à Presidência.
Vista como açodada e autoritária, a iniciativa abriu uma crise interna, com tucanos como o deputado federal e ex-presidenciável Aécio Neves (MG) e o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, rememorando o slogan para alfinetar o aspirante ao Planalto.
Aécio, por exemplo, divulgou nota com menção em tom irônico ao "inesquecível BolsoDoria" e disse que o tucano paulista fez uma "mudança de nome nas últimas eleições". Já Leite se gabou por não ter misturado seu sobrenome ao do presidente.
O movimento apareceu inicialmente na voz de apoiadores de Doria que se contrapunham ao candidato do PSDB à Presidência em 2018, o ex-governador Geraldo Alckmin, e defendiam o então deputado federal Jair Bolsonaro (à época no PSL).
A expressão começou a circular nos bastidores a partir do momento em que as pesquisas mostravam a dificuldade de Alckmin em decolar e a disparada de Bolsonaro nas intenções de voto.
Antes de tentar colar sua imagem à do candidato do PSL, porém, Doria já havia proferido ataques a Bolsonaro, atribuindo-lhe pechas como a de extremista e sugerindo que uma vitória dele seria desastrosa para o Brasil.
A associação a Bolsonaro criou mal-estar nos bastidores do PSDB, sobretudo porque Doria já havia sido acusado de tentar minar a pré-candidatura de Alckmin à Presidência e assumir o lugar dele como representante tucano na disputa pelo Planalto.
A então candidata a deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP) foi uma das articuladoras do slogan. Próxima de Doria, mas à época correligionária de Bolsonaro, ela incentivou o voto casado e buscou construir pontes entre eles.
Joice já descreveu o tucano como "um liberal escondido no PSDB" e afirmou que ele combinava muito mais com o PSL, que abrigou Bolsonaro na corrida presidencial.
A princípio, o então candidato a governador negou ser o autor ou difusor da ideia. Ele frisou ao longo do primeiro turno que seu candidato a presidente era o do PSDB. Sua campanha de TV, contudo, escondia tanto o nome da sigla quanto o do presidenciável.
Mais perto da votação, no entanto, adversários e até mesmo aliados já admitiam em conversas reservadas que Doria embarcaria na campanha de Bolsonaro e defenderia a combinação 17-45, diante da malsucedida campanha de Alckmin e dos resultados acanhados nas pesquisas.
Os sinais de "bolsonarização" foram se acentuando antes mesmo de Alckmin ser tirado do páreo. Em uma entrevista antes do pleito, o então candidato a governador afirmou que "não há mais o voto vinculado, de cima a baixo, necessariamente o mesmo partido".
Doria só passou a defender abertamente a estratégia BolsoDoria após o primeiro turno, depois que Bolsonaro se classificou para a disputa contra Fernando Haddad (PT). "A partir de amanhã às 7h30 serei um guerreiro intransigente contra o PT. Nós vamos apoiar Jair Bolsonaro", disse ainda no domingo do primeiro turno.
Daí em diante, ele usou camisetas com a expressão estampada, mencionou o termo em discursos e passou a alardear seu alinhamento com o então candidato do PSL, sobretudo na agenda econômica, mas também em pontos das pautas de costumes e de segurança pública.
O comitê de campanha do tucano chegou a produzir adesivos com a expressão e os números de ambos na urna.
A poucos dias da eleição, a Polícia Federal apreendeu no comitê adesivos com a estampa BolsoDoria que estavam sem os dados exigidos, como o nome do candidato que bancou a produção. Na época, a assessoria da campanha do tucano afirmou que havia identificado "uma pequena parcela de material" impresso fora das normas e que a distribuição desse lote havia sido suspensa.
O então candidato à Presidência nunca reforçou a campanha pelo voto BolsoDoria em São Paulo. Bolsonaro, que procurou se distanciar, já havia feito críticas a Doria enquanto o tucano era prefeito da capital paulista (de janeiro de 2017 a abril de 2018).
Ao longo da campanha, ele fez acenos tímidos ao tucano, quando questionado. Disse, por exemplo, que ambos tinham uma bandeira comum, a de combater o PT, e associou a ligação com a esquerda do principal adversário de Doria na disputa estadual, Márcio França (PSB), favorecendo a retórica tucana.
França compartilhou na época da disputa um vídeo em que, durante entrevista à rádio Jovem Pan, Doria dizia que não aceitaria o apoio de Bolsonaro. "Agradeço, mas declino. Não acredito em extremismos nem de direita nem de esquerda", afirmou o tucano.
Não. No segundo turno, quando Doria passou a encampar a dobradinha, ele chegou a viajar de São Paulo ao Rio de Janeiro para se encontrar com Bolsonaro e gravar um vídeo com ele. O então presidenciável, porém, não recebeu o tucano, que voltou sem o depoimento.
O PSL decidiu manter neutralidade no segundo turno paulista, sem declarar apoio a nenhum candidato. Doria buscou minimizar o constrangimento pelo desencontro, dizendo que Bolsonaro não pôde recebê-lo porque se sentia indisposto.
A leitura dos bolsonaristas foi a de que Doria tentou forçar uma imagem de aliança que não existia na prática, apesar dos estímulos da então deputada federal eleita Joice Hasselmann (PSL-SP), que acompanhou o amigo tucano na viagem ao Rio.
No dia seguinte ao episódio, o então candidato ao Planalto afirmou à imprensa que não havia marcado o encontro nem sabia se alguém tinha combinado por ele.
Em um discreto afago ao tucano, Bolsonaro disse que poderia "bater papo com ele sem problema nenhum" e agradeceu pelo apoio. "No momento eu desejo boa sorte ao Doria, tá Ok?", declarou.
O slogan escancarou a divisão no partido em 2018, opondo os grupos aliados de Alckmin e Doria. No entorno do ex-governador, o desconforto se acentuou ainda antes do primeiro turno, com a reclamação de que Doria já estaria se distanciando do presidenciável oficial do partido e preparando o embarque na campanha de Bolsonaro assim que pudesse --como, de fato, o fez.
Candidatos a deputado federal do PSDB no estado estimularam o voto BolsoDoria, buscando surfar a onda conservadora que se fortalecia no pleito daquele ano e, de quebra, alavancando seu potencial de votos. Com isso, a dobradinha foi incentivada visando aos frutos eleitorais.
O empenho acanhado de Doria na campanha de Alckmin reforçou a tese de que ele tentara trair seu padrinho político, buscando se cacifar para ser o postulante do PSDB ao Planalto. A posição formal da legenda no segundo turno foi a de não apoiar nenhum dos dois candidatos (Bolsonaro e Haddad).
A aposta de Doria ainda jogou por terra o esforço dos estrategistas de Alckmin para apresentar o PSDB como um partido moderado, mais ao centro, em estratégia para diferenciar o ex-governador de Bolsonaro, identificado como representante de uma direita radical.
Sim. Segundo dados tabulados pela Folha, Doria teve um desempenho superior nas urnas nas cidades onde Bolsonaro recebeu mais votos, ou seja, a carona ajudou.
O inverso também foi visto nas urnas, ou seja, nos municípios em que o então deputado federal não foi tão bem, o tucano seguiu o mesmo roteiro.
Pesquisas mostraram que o candidato do PSDB tinha desempenho superior entre os eleitores que declaravam ter o PSL como partido preferido.
Desde o início da campanha, o tucano poupou o presidenciável de críticas e preferiu centrar seus ataques no PT do ex-presidente Lula, salpicando suas falas contra França com petardos à esquerda, a Cuba e ao socialismo.
A avaliação na época foi a de que, se não funcionou como bala de prata para o triunfo do tucano, a associação com Bolsonaro foi ao menos um dos fatores cruciais para o resultado.
França impôs a Doria uma disputa acirrada no segundo turno. Os dois chegaram às vésperas do pleito empatados tecnicamente no Datafolha, com ligeira vantagem numérica para o candidato do PSB (51% a 49%). A mesma pesquisa mostrou que Doria era o candidato preferido de 72% dos eleitores paulistas que declaravam intenção de votar em Bolsonaro.
França também fez uma aproximação com aliados de Bolsonaro refratários ao tucano. Apesar de o nome do PSB ter se recusado a fazer campanha mencionando o então presidenciável, aliados dele distribuíram no estado adesivos que pregavam o voto duplo BolsoFrança.
Em meio ao fenômeno de direita que empurrou Bolsonaro e marcou aquela eleição, Doria venceu com 51,75% dos votos válidos, ante 48,25% do oponente.
Prejudicado pela alta rejeição por ter abandonado a prefeitura após apenas 15 meses de mandato, o representante do PSDB perdeu para o do PSB na capital e na região metropolitana, mas teve vantagem nos municípios do interior.
A movimentação feita por Doria neste mês para tentar se consolidar como o presidenciável do PSDB em 2022, enfrentando Bolsonaro em busca de reeleição, abriu um racha na legenda e fez adversários internos do paulista rememorarem sua adesão ao presidenciável em 2018.
O deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG), que Doria deseja ver fora da sigla, trouxe o assunto à tona em uma nota na qual insinuou que o governador age com oportunismo ao defender, agora, que o PSDB adote oposição mais incisiva ao governo federal.
"Se o sr. João Doria, por estratégia eleitoral, quer vestir um novo figurino oposicionista para tentar apagar a lembrança de que se apropriou do nome de Bolsonaro para vencer as eleições em São Paulo, através do inesquecível BolsoDoria, que o faça, sem utilizar indevidamente e de forma oportunista outros membros do partido", disse o mineiro.
Aécio também divulgou comunicado em que afirmou: "A obsessão do sr. João Doria em reafirmar, diariamente, que é oposição talvez seja um esforço inconsciente (ou não) para tentar apagar da sua memória, e da memória dos brasileiros, a sua mudança de nome nas últimas eleições, de João Doria para BolsoDoria".
O termo também foi recordado indiretamente pelo governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), que, em meio à crise na sigla, despontou como pré-candidato tucano à Presidência e recebeu o apoio de outras correntes da legenda.
Em entrevista ao jornal O Globo, o gaúcho reverberou os ataques de Aécio a Doria: "Diferentemente do governador Doria, eu não fiz campanha casada com Bolsonaro, não manifestei apoio ao candidato. Em nenhum momento misturei o meu sobrenome ao dele".
À Folha Leite disse que o eleitor deve distinguir gestos que foram tomados na eleição de 2018, ao explicar o apoio que ele também deu a Bolsonaro na ocasião.
"Eu sofri pressão para que fizesse campanha casada com Bolsonaro e não cedi. E manifestei, em função da eleição plebiscitária que é a do segundo turno, pela não volta do PT [...] Eu manifestei o voto como eleitor, não fiz campanha apoiando ou apoiada na candidatura de Bolsonaro", afirmou o gaúcho.
Em que momento Doria rompeu com Bolsonaro, sepultando o BolsoDoria?"O afastamento começou a se desenhar em meados de 2019. Uma das primeiras rusgas públicas veio com a reação de Doria a uma declaração de Bolsonaro sobre o pai do presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), em julho.
O presidente tripudiou o desaparecimento de Fernando Santa Cruz, vítima da repressão durante a ditadura militar (1964-1985). Doria classificou a conduta de infeliz e disse ser inaceitável que um presidente da República se manifestasse daquela forma.
Daí em diante, a guerra se aprofundou, com o tucano interessado em estabelecer um rompimento para cristalizar sua pré-candidatura nacional e o ocupante do Planalto disposto a asfixiar o virtual adversário.
A rixa ganhou proporção e chegou ao ápice com a pandemia do novo coronavírus. Enquanto o presidente minimizou a Covid-19, adotou o negacionismo científico como regra e sabotou as medidas sanitárias de prevenção do contágio, o governador optou pela via oposta, partindo para um embate declarado e contribuindo para a politização da crise.
O que Doria fala sobre a estratégia BolsoDoria depois que se distanciou de Bolsonaro?"O tucano sustenta um discurso de arrependimento sobre o apoio ao atual presidente. As críticas a determinados gestos e medidas de Bolsonaro lhe renderam, como esperado, a pecha de traidor.
"Não tenho compromisso com o erro. Foi um enorme erro, meu e de milhares de brasileiros. Nós temos um governo que de liberal só tem o discurso. É uma tristeza para o Brasil", afirmou em entrevista ao UOL no dia 2 de fevereiro.
Em 2019, já com as relações estremecidas, Doria afirmou em entrevista à GloboNews que não foi o responsável por criar o mote BolsoDoria. "Esse movimento nasceu no interior de São Paulo, mas eu incorporei. Eu jamais votaria no Fernando Haddad."
O tucano rechaça o rótulo de bolsonarista e já disse que nunca teve aliança com o governo Bolsonaro, mas apenas se comprometeu a apoiar as medidas que julgasse positivas.
Em meio à disputa política na crise do coronavírus, Bolsonaro disse, em março de 2020: "[Doria] é um governador que nega ter usado o meu nome para se eleger governador".
Nas eleições municipais de 2020, o candidato a prefeito da capital Guilherme Boulos (PSOL) lançou mão da expressão para fustigar o candidato tucano à reeleição, Bruno Covas.
O psolista lembrou na campanha que Covas é colega de partido de Doria e, em diversos momentos, defendeu a necessidade de a esquerda derrotar "a dupla BolsoDoria".
O discurso de Boulos ganhou força no segundo turno, quando o candidato apadrinhado por Bolsonaro no primeiro turno, o deputado federal Celso Russomanno (Republicanos), passou a apoiar Covas. O postulante do PSOL, que disputava contra o tucano, afirmou se tratar de reedição do voto BolsoDoria.
Russomanno resgatou o tópico no pleito municipal, ao dizer no horário eleitoral de TV que Doria "usou o 'BolsoDoria' para se eleger governador e depois virou as costas".
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