Conteúdo investigado: Publicação compartilha link de matéria e print de uma manchete do site Tribuna Nacional que diz “Governo canadense admite que 74% dos triplamente vacinados tem Aids”. A legenda afirma que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) teria avisado sobre a relação entre a covid-19 e a Aids e questiona: “será que daria pra lascar um processo naqueles comunistas e genocidas da cpmi do circo?”.
Onde foi publicado: X (antigo Twitter) e site.
Conclusão do Comprova: É falso que o governo canadense tenha admitido que pessoas que foram vacinadas contra a covid-19 tenham desenvolvido quadro de Aids. A Agência de Saúde Pública do Canadá (PHAC, em inglês) confirmou que a notícia é falsa e apresentou links de agências de checagem internacionais que desmentem a correlação.
Uma publicação no X distorce dados epidemiológicos do governo do Canadá. Nestes relatórios, não há qualquer menção ao HIV. Há somente informações referentes ao resumo dos casos, mortes, testes e variantes preocupantes de covid-19 em todo o Canadá ao longo do tempo.
Os dados destacados no conteúdo investigado são inadequados e as comparações propostas ali não fazem sentido. Em uma delas, o texto afirma que a população não vacinada teve menos casos de covid-19. Porém, a população não vacinada é muito menor do que a que foi vacinada.
Por exemplo, na segunda semana epidemiológica citada no artigo, terminada em 13 de fevereiro de 2022, os dados oficiais do governo canadense mostram que a população vacinada com duas doses era de 13,72 milhões de habitantes. Os triplamente vacinados eram 16,84 milhões e os não vacinados eram 5,75 milhões. Esses dados foram obtidos na plataforma Wayback Machine, que compila páginas antigas da Internet. No conteúdo investigado, a população por status de vacinação foi subestimada no casos dos vacinados (11,50 e 11,70 milhões, respectivamente), e superestimada para os não vacinados (13,21 milhões).
Para efeitos de comparação, desde o início da vacinação, em dezembro de 2020, 40% dos casos confirmados de covid foram de não vacinados, contra 32,3% de vacinados com esquema inicial e 18,7% com uma dose de reforço. Esses números são de 14 de outubro de 2022, data da última atualização do portal da Agência de Saúde Pública do Canadá.
Além disso, o conteúdo investigado usa dados de dezembro de 2020 a 2022, quando a proporção de vacinados e não vacinados oscilou drasticamente com o avanço da imunização. O Canadá demorou para iniciar o processo, mas teve uma alta busca por vacinação, além de ter adotado medidas mais rígidas para conter a disseminação do vírus.
Alguns dos gráficos usados no material de desinformação apresentam dados corretos sobre vacinados no Canadá. Os números mostrados não revelam qualquer relação com casos de Aids ou imunodeficiência adquirida.
Consultado pelo Comprova, o médico imunologista e especialista em doenças parasitárias e infecciosas José David Urbáez Brito, que também é presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, reforça que a ideia de que vacinados perdem imunidade e desenvolvem Aids não se sustenta.
“Primeiro que a Aids é uma doença causada por um vírus. É o vírus da imunodeficiência humana, HIV. Então essa vacina (de covid-19) não tem nenhum componente vivo, nada que possa lembrar um vírus. Portanto, não teria nem maneira (de causar a infecção). Mesmo que a intenção fosse de uma conspiração internacional completamente à margem da ética, não há maneira”, afirma o especialista.
Ele avalia ainda que a metodologia, de comparar eficácia da vacina com base no número de casos de vacinados e não vacinados, é utilizada apenas em fase de testes ou nos estágios iniciais da criação de uma vacina. “O cálculo você faz quando a vacina é criada, neste momento você vai comparar o número de casos entre pessoas vacinadas com o número de casos entre pessoas não vacinadas. Você calcula a eficácia porque você vai ver que entre os vacinados teve um caso, entre os não vacinados teve 100 casos. Então, aí a vacina evitou 99 casos”, explicou.
Falso: Conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma falsidade.
Alcance da publicação: O Comprova investiga os conteúdos suspeitos com maior alcance nas redes sociais. O post foi excluído antes da finalização desta verificação, mas até o dia 3 de outubro, a publicação no X contava com 97 mil visualizações.
Como verificamos: Inicialmente, procuramos informações sobre a covid-19 no Canadá no site oficial do governo local. Também buscamos no Google pelas palavras-chave “Canadá covid aids”, para saber se houve algum pronunciamento relacionando a vacinação com a doença. Buscamos pelo site britânico The Exposé, para encontrar o conteúdo original, traduzido pelo Tribuna Nacional. Pesquisamos no Google por explicações oficiais e médicas sobre o vírus da Aids, além de outros momentos em que peças de desinformação envolvendo vacinas de covid-19 e Aids viralizaram. Em seguida, buscamos pelo site da Agência de Saúde Pública do Canadá no Wayback Machine, para tentar encontrar os dados apresentados na matéria.
Por fim, entramos em contato com José David Urbáez Brito, presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal e com a Agência de Saúde Pública do Canadá. Buscamos pelo autor em outras redes sociais e no Google, mas não encontramos nenhuma informação que nos permitisse entrar em contato com ele. Na rede social X não há possibilidade de pessoas que não se seguem mutuamente enviarem mensagens.
Além de usar dados de forma incorreta, a publicação investigada compara a Aids a uma suposta redução da resposta do sistema imunológico após a aplicação da vacina de covid-19. O artigo cita até mesmo que os imunizantes contra a doença causariam a “síndrome de imunodeficiência adquirida por vacina” (vaids), uma espécie de Aids. As alegações são infundadas, como também mostram outras verificações, em Reuters, AP e AFP.
A Aids é o estágio mais avançado da infecção por HIV e ocorre se o paciente não utilizar medicamentos antirretrovirais e recusar acompanhamento médico. Conforme a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), o HIV tem como alvo o sistema imunológico e enfraquece os sistemas de defesa das pessoas contra infecções e alguns tipos de câncer.
Como o vírus destrói e prejudica a função das células imunes, os pacientes vivendo com o vírus se tornam gradualmente imunodeficientes. A função imunológica é medida pela contagem de células CD4, um tipo de linfócito que atua na identificação, no ataque e na destruição de bactérias, fungos e vírus que invadem o corpo.
A imunodeficiência resulta em um aumento da suscetibilidade a várias infecções e doenças que pessoas com um sistema imune saudável podem combater. Com o avanço da medicina, o uso de medicamentos antirretrovirais permitiu que pessoas vivendo com HIV não desenvolvessem Aids e pudessem viver com qualidade. Pessoas com HIV em tratamento antes do avanço da doença podem ter expectativa de vida quase igual à de pessoas não infectadas.
O efeito imunossupressor causado tanto por medicamentos como pela manifestação da Aids não tem qualquer relação com a resposta do sistema imunológico após a aplicação de vacinas. Conforme o médico José David Urbáez Brito, a publicação investigada tenta associar erroneamente a vacina à diminuição da imunidade.
Medicamentos imunossupressores são geralmente usados por pessoas que fazem tratamento para doenças autoimunes como lúpus, artrite reumatoide, doença de Crohn e anemia hemolítica. Pessoas que estão em tratamento pós-transplante de órgãos ou células tronco ou ainda que façam quimioterapia também são consideradas imunossuprimidas.
“Nesse paciente, o tratamento passa por modificar a imunidade do indivíduo por conta da própria natureza agressiva do tratamento. Então, uma leucemia aguda, para você combater, você usa tratamentos agressivos que acabam destruindo a medula óssea e você fica imunossuprimido, você fica sem as células de defesa. Então, o que eles estão tentando combinar nesse texto é que a vacina agiria modificando o sistema imunológico para ele ficar fraco, como se fosse um imunossupressor. Isso não existe”, ressalta o infectologista.
Ao Comprova, a Agência de Saúde Pública do Canadá negou a informação de que as vacinas contra covid tenham causado Aids e apresentou links de agências de checagem internacionais que desmentem a correlação entre a vacinação contra covid-19 e a Aids, como esta da AP News. Ao site de verificação de fatos Lead Stories, a agência enviou uma resposta ressaltando o caráter falso do artigo.
“Com bilhões de doses de vacinas contra a covid-19 administradas a indivíduos em todo o mundo, os dados do mundo real sugerem fortemente que os indivíduos vacinados contra a covid-19 não ficam imunocomprometidos após a vacinação. A eficácia protetora destas vacinas contra a casos graves de covid-19 é inequivocamente conhecida por ser mediada pela atividade do sistema imunitário do indivíduo vacinado”, explicou em nota.
A agência destacou que, até a data de fechamento deste material, ainda não haviam sido apresentadas à PHAC quaisquer notificações de Aids após a vacinação contra a covid-19. Além disso, a nota ressalta ainda que as autoridades de saúde canadenses monitoram “continuamente” os dados sobre a vacinação no país.
“A vacinação continua a ser uma das formas mais eficazes de proteger as nossas famílias, comunidades e nós próprios contra a covid-19. As evidências mostram que as vacinas utilizadas no Canadá são muito eficazes na prevenção de casos graves, hospitalização e morte por covid-19”, concluiu a agência.
Segundo dados oficiais do governo canadense, o país administrou mais de 99 milhões de doses de vacina contra a covid-19 de 14 de dezembro de 2020 até 10 de setembro de 2023, última atualização da plataforma. Do total da população, 83,2% receberam pelo menos uma dose – o equivalente a 32.372.771 habitantes –, enquanto 80,5% do total completaram o esquema primário de vacinação. A terceira dose foi aplicada em 62,2% dos mais de 24 milhões que já tomaram duas doses.
Com a vacinação alcançando mais de três quartos da população canandense, os números de casos e mortes caíram drasticamente. Depois de ter ultrapassado os 300 mil casos e beirado as 900 mortes em uma semana epidemiológica de janeiro de 2022, a semana terminada em 4 de outubro de 2023 registrou 7.901 novos casos e 65 mortes pela doença.
A publicação analisada apresenta dados verídicos, mas compara o número de casos entre vacinados, com até três doses tomadas, e não vacinados. A metodologia, conforme o médico José David Urbáez Brito, é considerada em fases iniciais da vacina. Com a aplicação em massa na população, é feita a análise da onda de contágio do contingente total de habitantes de um país.
“Quando faz o ensaio da vacina, você tem esse interesse (de comparar vacinados e não vacinados), mas depois você vai ver como se comportava a população toda. E aí o que você viu foi a queda vertiginosa, a ausência de casos graves e de óbito. A eficácia você calcula lá atrás. Para você, com isso, fazer a incorporação aos programas de vacinação”, pontuou.
Em um material explicativo publicado pelo Comprova em 25 de agosto de 2022, foi mostrado que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foi alvo de inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) por associar a vacinação contra a covid-19 com o desenvolvimento da Aids.
Em uma de suas lives semanais, em 21 de outubro de 2021, Bolsonaro leu uma notícia que afirmava que relatórios oficiais do governo do Reino Unido sugeriam que pessoas totalmente vacinadas contra a covid-19 – a época, com três doses – estariam desenvolvendo a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (Aids) de maneira muito mais rápida do que o previsto.
“Recomendo ler a matéria, não vou ler para vocês aqui porque posso ter problema com a minha live aqui, não quero que caia a live aqui, eu quero dar informações concretas. Vou deixar bem claro aqui, talvez eu tenha sido o único chefe de Estado do mundo que tenha tido coragem de colocar a cara à tapa nessa questão”, disse o ex-presidente. A transcrição do áudio original desta live está em uma pasta organizada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e disponibilizada na ferramenta Pinpoint, do Google, que reúne a transcrição de todas as lives semanais do presidente.
A matéria lida por Bolsonaro era do site norte-americano Before It’s News, conhecido por propagar informações falsas sobre vacinas. À época, em resposta ao Fato ou Fake, do g1, o Departamento de Saúde e Assistência Social do Reino Unido afirmou que a publicação é de um site que propaga “fake news” e teorias da conspiração e diz que a história não é verdadeira.
A suposta relação entre a vacina e a doença teve uma sobrevida em fevereiro de 2023, quando peças de desinformação começaram a circular dizendo que o governo alemão teria anunciado que “um número alarmante” de vacinados contra a covid-19 estariam desenvolvendo a síndrome de imunodeficiência adquirida. Agências de verificação como a Lupa e a AFP Checamos mostraram que esses conteúdos eram falsos.
O que diz o responsável pela publicação: Não é possível enviar mensagens diretas por meio de contas que não se seguem mutuamente no X (antigo Twitter). O nome do autor da publicação foi procurado em outras redes sociais, mas as contas não eram do mesmo usuário.
O que podemos aprender com esta verificação: Uma das táticas mais comuns de peças de desinformação é a utilização de dados reais utilizados de forma distorcida para corroborar uma informação falsa. A série de estatísticas reais sobre a situação de casos de covid-19 e vacinação no Canadá poderiam gerar uma espécie de credibilidade dos subsequentes cálculos e o suposto desenvolvimento de Aids.
Além disso, caso o governo canadense realmente tivesse admitido ou afirmado algo nesse sentido, tal informação seria amplamente divulgada pelos próprios canais oficiais e em diversos veículos de comunicação
Por que investigamos: O Comprova monitora conteúdos suspeitos publicados em redes sociais e aplicativos de mensagem sobre políticas públicas e eleições no âmbito federal e abre investigações para aquelas publicações que obtiveram maior alcance e engajamento. Você também pode sugerir verificações pelo WhatsApp +55 11 97045-4984.
Outras checagens sobre o tema: As agências Aos Fatos, boatos.org e Reuters também verificaram o mesmo conteúdo e concluíram que a alegação é falsa.
A temática da vacinação costuma ser alvo de desinformadores e peças sobre o assunto já foram verificadas pelo Comprova. Recentemente, o projeto mostrou que CDC não falsificou dados nem admitiu que 99% das mortes por Covid nos EUA foram por outras causas, que governo da Flórida não declarou vacina contra a covid-19 uma arma biológica, ao contrário do que diz post e que OMS não admitiu que bebês de mães vacinadas estão nascendo com problemas no coração.
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