O governo Jair Bolsonaro (sem partido) vai realizar neste ano o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) com a menor proporção de inscritos pretos, pardos e indígenas dos últimos dez anos. A prova também terá a menor participação de candidatos com isenção de taxa, ou seja, aqueles com renda familiar de até 1,5 salário mínimo.
Com isso, o Enem 2021 rompe uma trajetória de inclusão de estudantes negros e mais pobres. Desde 2009, as inscrições mostravam aumento da participação desses grupos na prova, que é a principal porta de acesso ao ensino superior no país.
A edição deste ano recebeu o menor número de inscrições dos últimos 14 anos. A prova, que já teve mais de 8,7 milhões de inscritos, teve em 2021 apenas 3,1 milhões.
A queda nas inscrições é reflexo da decisão do governo Bolsonaro de retirar a isenção de taxa de quem faltou na última edição da prova, feita em um dos momentos de maior pico da pandemia no Brasil. O tema foi parar no STF (Supremo Tribunal Federal).
Os dados mostram que a redução é puxada principalmente pela exclusão de estudantes negros e pobres.
Um levantamento feito pelo Semesp (Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior) mostra que 11,7% dos inscritos para o Enem 2021 são pretos. É a menor proporção desde 2009, quando eles representaram 6,3% dos inscritos.
Em números absolutos, a prova chegou a ter mais de 1,1 milhão de inscritos pretos em 2016. Em 2021, eles serão apenas 362,3 mil.
Os pardos serão 42,2% dos participantes da próxima prova. É o menor percentual desde 2012, quando eles foram 41,4% do total. São cerca de 1,3 milhão de alunos pardos neste ano, um grupo que já ultrapassou 4 milhões de inscritos -mais do que o total de registros para a prova deste ano.
A redução também é expressiva entre os estudantes mais pobres. O número de inscritos com isenção da taxa por declaração de carência caiu 77% em relação à última prova.
Só 26,5% das pessoas que vão fazer o Enem 2021 conseguiram a inscrição gratuita por terem tido a situação de vulnerabilidade financeira aprovada. Têm direito à isenção aqueles que cursaram o ensino médio em escola pública e têm renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo ou que estão inscritos no CadÚnico. Na edição anterior, esse grupo representava 63% de todos os inscritos.
Ao todo, só 822,8 mil conseguiram a gratuidade por vulnerabilidade financeira. É o menor número de beneficiados desde 2017 -último ano em que esse dado está disponível.
Também houve queda de inscrição de 20,8% dos que têm direito automático à isenção por ter cursado o ensino médio em escola pública. Só 910 mil inscritos receberam a gratuidade, menor número desde 2017.
A diarista Ilma Brito, 36, foi uma das que perderam o direito de isenção por ter faltado na última edição. Ela conta que foi fazer a prova, mas encontrou a sala superlotada.
"Eu queria tentar porque é meu sonho entrar em uma universidade, mas fiquei com medo. As salas estavam tumultuadas, cheias de gente. Eu só pensava que não podia correr o risco de levar Covid pra dentro da minha casa, meu filho tem bronquite."
Mãe de dois meninos, de 11 e 6 anos de idade, ela é a única fonte de renda da família. Há anos ela estuda para entrar em uma faculdade para conseguir um emprego com salário melhor. "Só vejo um futuro melhor se eu puder estudar."
Ela conta que pensou em pagar a taxa de inscrição de R$ 85 quando teve o benefício negado, mas não teve condições de arcar com a despesa. "É o valor de uma compra de mercado. É quase o valor que eu recebo por uma diária de trabalho."
Jhady Santos, 19, também teve o benefício negado neste ano. Ela sempre estudou em escola pública e se preparava para mais uma vez tentar uma vaga em administração. "É um sonho que vai ficando cada vez mais longe", diz a jovem, que começou a trabalhar na pandemia para ajudar os pais.
Desde junho, quando o edital do Enem 2021 foi publicado, com a regra que retirava a isenção dos faltosos, entidades e especialistas alertavam para a exclusão dos estudantes mais pobres.
A Defensoria Pública ingressou com ação judicial e um projeto de lei chegou a ser apresentado na Câmara para garantir esse direito. O governo Bolsonaro, no entanto, conseguiu na Justiça manter o veto de gratuidade da taxa aos faltosos.
O ministro da Educação, Milton Ribeiro, justificou a retirada da isenção pela economia de recursos. Segundo ele, a pasta não pode arcar com os custos da prova de quem faltou anteriormente.
Entidades estudantis pediram para o STF (Supremo Tribunal Federal) determinar a reabertura das inscrições do Enem com isenção aos ausentes.
"O ministério sabia que manter essa regra iria resultar na exclusão dos mais pobres e, ainda assim, decidiu mantê-la. Por isso, esperamos que a justiça possa intervir e reverter essa situação cruel", diz Frei David, presidente da Educafro, uma das entidades que ingressaram com a ação.
Para ele, a exclusão dos alunos pobres e negros faz parte da política do governo Bolsonaro de não garantir o acesso ao ensino superior. Em agosto, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, afirmou que as universidades devem ser para poucos.
"O ministro conduz com maestria a política que defende, a de excluir pobres e negros. Eles querem que a universidade seja para poucos e o Enem deste ano é o primeiro passo para esse objetivo."
Rodrigo Capelato, diretor-executivo do Semesp, diz que os dados de inscritos mostram um retrocesso histórico no Enem. Quando o exame se transformou em vestibular nacional em 2008, tinha como objetivo facilitar o acesso ao ensino superior.
"A participação dos estudantes historicamente mais excluídos vinha aumentando ano a ano, ainda que em um ritmo aquém do necessário. Agora, depois de dez anos de crescimento, temos um enorme retrocesso."
Além de selecionar estudantes para as universidades públicas do país, o Enem também é critério de acesso a bolsas do ProUni (Programa Universidade para Todos) e Fies (Financiamento Estudantil) em faculdades particulares.
Criadora do Enem, Maria Inês Fini diz que a retirada da isenção para quem faltou durante a pandemia é uma "punição cruel" aos estudantes.
Em 2018, quando foi presidente do Inep, órgão responsável pela realização da prova, Fini criou a regra que retirava a isenção para quem faltou na edição anterior sem apresentar justificativa. Apesar de ter estabelecido a regra, ela diz que a medida deveria ter sido suspensa neste ano.
"A regra foi criada para evitar o desperdício de dinheiro público, dando a chance para que o aluno justificasse a sua ausência. Mas em um momento de pandemia não há como se exigir um documento que justifique o medo de adoecer, de contaminar os familiares."
"Manter a regra nessas circunstâncias é uma demonstração de total incompreensão sobre a importância do Enem. É falta de solidariedade, de compaixão", completa.
A Folha questionou MEC e Inep sobre os dados de inscrição e a possibilidade de rever a retirada de isenção dos candidatos. A pasta não respondeu.
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