Entenda a Lei da Ficha Limpa, a decisão de Kassio no STF e os questionamentos
Decisão de ministro indicado por Bolsonaro encurta tempo de inelegibilidade de condenados, e colocou o Tribunal Superior Eleitoral diante de um impasse.
Publicado em 22 de dezembro de 2020 às 23:14
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Kassio Nunes é ministro do STF, por indicação de Bolsonaro. (Samuel Figueira/TRF 1ª Região)
O trecho suspenso pela decisão de caráter provisório regula a contagem de tempo da inelegibilidade de pessoas condenadas em segunda instância ou por órgãos colegiados da Justiça.
Na prática, a ordem de Kassio encurta o tempo que um condenado fica inelegível.
A liminar motivou críticas de movimentos de combate à corrupção e colocou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) diante de um impasse.
ENTENDA A LEI DA FICHA LIMPA, A DECISÃO DE KASSIO E OS PRINCIPAIS DESDOBRAMENTOS
O que é a Lei da Ficha Limpa e desde quando está em vigor? Aprovada em 2010, no último ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a norma estabelece que políticos condenados por órgãos colegiados (como tribunais de segunda instância) ou cujo processo transitou em julgado ficam inelegíveis desde a condenação até oito anos depois de cumprirem a pena.
A lei lista dez tipos de crimes aos quais se aplica a proibição de disputar eleições, como corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico de drogas.
Qual foi a decisão de Kassio? O ministro Kassio Nunes Marques concedeu uma decisão liminar que muda o cálculo para a contagem da inelegibilidade imposta pela Lei da Ficha Limpa.
A redação original da norma diz que a inelegibilidade tem início na condenação e só acaba oito anos depois de o condenado ter cumprido a sua pena.
Kassio, atendendo a um pedido do PDT, suspendeu os efeitos da frase "após o cumprimento da pena", que consta em um dos dispositivos sobre as hipóteses de inelegibilidade da Lei da Ficha Limpa.
Com isso, o cálculo muda e a pessoa fica inelegível por oito anos a partir do momento em que é condenada por um tribunal colegiado. Findo o período, pode concorrer novamente.
A decisão de Kassio determina que a mudança só seja aplicada a processos relativos a candidaturas nas eleições deste ano que ainda não tiveram o julgamento concluído pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Na prática, a ordem encurta o tempo que um condenado em segundo grau ou órgão colegiado fica inelegível, já que nem sempre o cumprimento da pena tem início quando da condenação.
Quais foram os argumentos do PDT para pedir a medida? Kassio, em decisão assinada no sábado dia 19 de dezembro, atendeu a um recurso do PDT, que contestava o início do cálculo de inelegibilidade.
O partido argumentou, em pedido feito no dia 15 de dezembro, que em muitos casos a demora no julgamento de recursos acarreta um tempo de inelegibilidade indeterminado, já que, salvo exceções previstas em lei, o cumprimento da pena deve se iniciar somente após o trânsito em julgado (quando já não é mais possível recorrer e o processo se encerra).
Com isso, a inelegibilidade pode passar dos oito anos por conta de uma demora do próprio Judiciário.
A legenda diz que o trecho que acabou sendo cortado "vilipendia direitos e garantias fundamentais", porque a interpretação da expressão tem proporcionado inelegibilidade por tempo indeterminado, dependendo do tempo de tramitação do processo.
A sigla explica na ação que, como a Lei da Ficha Limpa não foi aplicada nas eleições de 2010, o efeito do trecho questionado só veio a ser sentido de maneira mais significativa nas disputas deste ano, oito anos após o início da vigência da lei (nas eleições de 2012).
De acordo com o PDT, dos 557.406 pedidos de registros de candidaturas, 2.357 foram indeferidos com base na Lei da Ficha Limpa.
A ação, diz o partido, não se refere a todos esses casos, já que nem todos os indeferimentos se deram com base no trecho alterado pela decisão do ministro. A legenda afirma que há casos em que o prazo de inelegibilidade já foi cumprido antes do marco temporal estabelecido.
Quais foram os argumentos do ministro do STF para conceder a liminar? Kassio justificou a decisão alegando não concordar com o prazo indeterminado da punição.
"A ausência da previsão de detração [abatimento da pena total por já se ter cumprido parte dela], a que aludem as razões iniciais, faz protrair por prazo indeterminado os efeitos do dispositivo impugnado, em desprestígio ao princípio da proporcionalidade e com sério comprometimento do devido processo legal", diz Kassio.
O ministro, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro, argumenta ainda que "impedir a diplomação de candidatos legitimamente eleitos, a um só tempo, vulnera a segurança jurídica imanente ao processo eleitoral em si mesmo, bem como acarreta a indesejável precarização da representação política pertinente aos cargos em análise".
Quais os principais questionamentos em relação à decisão de Kassio? O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral viu na medida de Kassio "uma articulação de forças que pretende esvaziar a lei, com ataques pontuais que visam dilacerar o seu conteúdo sob alegação de aperfeiçoá-la, tentativa essa oriunda daqueles que podem ser atingidos por ela ou que buscam poupar seus aliados".
O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral viu na medida de Kassio "uma articulação de forças que pretende esvaziar a lei, com ataques pontuais que visam dilacerar o seu conteúdo sob alegação de aperfeiçoá-la, tentativa essa oriunda daqueles que podem ser atingidos por ela ou que buscam poupar seus aliados".
O juiz aposentado Márlon Reis, autor da Lei da Ficha Limpa, classifica a decisão do ministro como "o maior atentado da história" à regra em seus dez anos de existência.
"Estão tentando relativizar prazos num assunto em que quem determina estes prazos são os próprios condenados. Sempre tivemos no Brasil um problema grave de réus que usam do grande sistema de recursos que temos no país, para protelar, para evitar a punição", afirmou Reis à reportagem.
O presidente Jair Bolsonaro defendeu a liminar de Kassio. Em entrevista, disse que a decisão do ministro não tinha "nada demais".
"O que ele definiu foi prazo de inelegibilidade, que estava em aberto, apenas após a condenação. O cara estava dez anos respondendo. Quem erra tem que pagar. Mas não pode pagar 'ad eternum'. Ele definiu que o prazo conta a partir da data do início do processo. Nada demais isso", disse o presidente.
Quais os próximos passos? A Procuradoria-Geral da República recorreu da decisão do ministro. O recurso foi apresentado ao presidente do STF, ministro Luiz Fux, responsável por temas urgentes que chegam ao tribunal durante o recesso, que vai até fevereiro.
No documento, a PGR pede que a liminar seja suspensa ou, alternativamente, sejam paralisados todos os processos de registro de candidaturas que se enquadrem no trecho da lei que foi suspenso por Kassio Nunes Marques.
Quatro ministros do STF decidiram abrir mão do descanso no recesso do Judiciário e vão continuar trabalhando em seus processos em janeiro. Isso pode tirar poder da mão de Fux.
No recesso, o presidente da corte pode decidir questões urgentes mesmo em processos de outros ministros. Com quatro ministros na ativa, Fux pode perder parte dessa prerrogativa.
Qual o reflexo para o TSE? O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) está sendo impactado de imediato com a mudança causada pela liminar.
Desde segunda, segundo o jornal Valor Econômico, chegaram à corte dois recursos de políticos que pretendem assegurar vagas barradas pela Lei da Ficha Limpa, um condenado por tráfico de drogas e outro por crime contra o patrimônio público.
Um deles é o líder comunitário Júlio Fessô (Rede), que teve a candidatura barrada por ter sido condenado, em 2006, por tráfico de drogas. Ele pretendia ser vereador de Belo Horizonte.
Fessô cumpriu pena até 2011, mas foi considerado inelegível por conta de uma multa não quitada, que o TRE (Tribunal Regional Eleitoral) de Minas Gerais só considerou prescrita em 2013.
O outro recurso é de Adair Henriques da Silva (DEM), que foi eleito prefeito em Bom Jesus de Goiás (GO), mas também foi enquadrado na Lei da Ficha Limpa. Ele foi o primeiro prefeito eleito, neste ano, a ter candidatura barrada.
Silva foi condenado em 2009 por crime contra o patrimônio público. A extinção da pena só aconteceu em 2015, quando começou a contar o prazo de oito anos de inelegibilidade.