BRASÍLIA - Combatida pelo Ministério da Saúde, a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que permite a comercialização do plasma sanguíneo foi aprovada na quarta-feira (4) pela CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) do Senado.
Essa parte líquida do sangue é usada em tratamentos, transfusões, pesquisa e fabricação de medicamentos hemoderivados — muitos deles de alto custo e escassos.
A PEC altera o artigo 199 da Constituição Federal, que hoje impede a comercialização do sangue. Também retira forças da estatal Hemobrás, única autorizada a produzir medicamentos à base do produto coletado no Brasil.
Para ser aprovada, além de passar pelas comissões, uma PEC precisa de três quintos dos votos nos plenários do Senado e da Câmara, em discussões de dois turnos.
O senador Nelsinho Trad (PSD-MS) protocolou a proposta em abril de 2022 com apoio de parlamentares do governo e da oposição.
Dois dos hoje ministros do presidente Lula (PT) subscreveram a PEC 10/2022: Alexandre Silveira (Minas e Energia) e Carlos Fávaro (Agricultura).
A proposta inicial permitia a participação do setor privado na coleta e no processamento do plasma para desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de biofármacos destinados ao SUS.
O parecer sobre a proposta, apresentado pela senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB) à CCJ, ampliou as possibilidades de participação do setor privado. Além de inserir a permissão de "comercialização" do plasma, o relatório afirma que os produtos devem ser "preferencialmente" entregues ao SUS.
O texto de Daniella afirma que uma lei "disporá sobre as condições e os requisitos para a coleta, o processamento e a comercialização de plasma humano pela iniciativa pública e pela iniciativa privada".
O relatório chegou a sugerir a "coleta remunerada" do plasma, mas o trecho foi retirado do parecer pela senadora.
Para opositores da PEC, porém, o relatório mais recente ainda abre margem para alterar a legislação e permitir o pagamento para doadores de sangue e plasma.
Alguns dos senadores que assinaram a PEC, como Rogério Carvalho (PT-SE), agora defendem a rejeição do relatório. Eles consideraram que a proposta original foi perdida após as sugestões de Daniella.
O Ministério da Saúde afirma que a venda do plasma pode retirar a oferta de sangue para tratamentos e produções de medicamentos do SUS.
A pasta ainda considera que a PEC é uma tentativa de enfraquecer a Hemobrás e vê risco sanitário de eventual liberação do pagamento a doadores de sangue.
Os conselhos de secretários de Saúde dos estados (Conass) e municípios (Conasems) pedem a reprovação da PEC. Em nota conjunta, afirmam que a proposta "coloca em risco a saúde de pacientes e doadores e risco de extrativismo de pessoas".
Opositores também afirmam que a proposta pode estimular a comercialização de órgãos e tecidos.
A Hemobrás afirma que não desperdiça o plasma e defende investimentos na rede de coleta e distribuição de sangue. A empresa pública ainda afirma que não há garantias, na PEC, de que os produtos feitos à base do sangue coletado no Brasil voltariam ao país.
O senador Nelsinho Trad apontou como motivações da PEC a queda da coleta de plasma na pandemia e o descarte de bolsas do produto no Brasil que não haviam sido usadas.
Ele disse à Folha de S.Paulo que o país precisa aperfeiçoar a doação de plasma por plasmaférese, processo em que o plasma é retirado do sangue coletado e uma máquina devolve as hemáceas e outros elementos ao doador.
Daniella, relatora do texto, afirma que a produção de hemoderivados é uma questão estratégica e que a Hemobrás ainda não entrega a quantidade de medicamentos do tipo "que os usuários do SUS necessitam".
Ela também afirma que não há intenção de liberar a coleta paga de sangue ou a liberação da venda de órgãos.
A ABBS (Associação Brasileira de Bancos de Sangue), que representa o setor privado, afirma que a PEC é uma forma de "reduzir a dependência de importações de medicamentos e impulsionar a indústria nacional, além de combater o desperdício de plasma".
A PEC recebeu 15 votos favoráveis e 11 contrários na CCJ.
Apesar de o Ministério da Saúde pedir a reprovação do texto, seis parlamentares do PSD votaram pela aprovação do texto. O partido tem três ministros no governo.
Integrante da oposição, o senador Magno Malta (PL-ES) votou contra o projeto. O senadores Eduardo Girão (Novo-CE) e Mara Gabrilli (PSD-SP) também defenderam a reprovação do texto, mas não chegaram a votar pois não são membros titulares da comissão.
Parlamentares contrários ao texto agora tentam derrubar ou alterar a proposta no plenário. Uma das ideias para reduzir o impacto da PEC é sugerir que apenas empresas autorizadas pelo Ministério da Saúde participem do fracionamento do plasma, desde que todos os produtos sejam entregues ao SUS.
Hoje apenas a Hemobrás está autorizada a usar o plasma coletado no Brasil para a produção de medicamentos.
A estatal recolhe o plasma excedente dos hemocentros, ou seja, a parcela do sangue que não é usada em transfusões ou outros tratamentos, qualifica o produto e envia para o fracionamento. Essa última etapa serve para isolar componentes do plasma.
O serviço é feito na Europa por uma empresa que tem parceria com a estatal, pois a unidade de fracionamento do plasma da Hemobrás não está pronta.
Depois desse fracionamento, a Hemobrás recebe os medicamentos hemoderivados, como a imunoglobulina, que são distribuídos ao SUS.
O Ministério da Saúde afirma que a estatal entrega 30% dos hemoderivados ofertados no SUS. O plano é produzir 80% desses produtos na Hemobrás em 2025, ano em que o governo espera concluir a fábrica da empresa.
O novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) prevê investimentos de cerca de R$ 900 milhões no parque fabril e na qualificação da rede de coleta de sangue no Brasil.
Criada em 2004, a Hemobrás ficou marcada por apuração da Polícia Federal sobre fraude em licitação de obras e atrasos para finalizar a sua fábrica, localizada em Goiana (PE).
De 2016 a 2020, o plasma brasileiro não foi fracionado e milhares de bolsas foram descartadas. O desperdício é citado na justificativa da PEC.
Neste período, a empresa que processava no exterior o plasma brasileiro perdeu a certificação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Além disso, o governo mudou regras de gestão do sangue coletado e esvaziou os poderes da estatal. A Hemobrás afirma que as barreiras já foram superadas e que o produto voltou a ser usado para a fabricação de medicamentos ao SUS.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta