O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) pode julgar na tarde desta quarta-feira (24) se o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) terá de depor presencialmente ou se poderá fazê-lo por escrito no inquérito que investiga suposta interferência política dele na Polícia Federal.
Em dezembro passado, o ministro Alexandre de Moraes havia negado um pedido de Bolsonaro para não depor no inquérito. Na ocasião, Moraes decidiu que caberá ao plenário do STF- ou seja, ao colegiado de 11 ministros - definir como será o depoimento do presidente, se presencial ou por escrito.
No fim de novembro, Bolsonaro abriu mão da possibilidade de se justificar pessoalmente sobre a suposta interferência que ele teria tido no órgão. Por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), o presidente ainda recusou oficialmente a possibilidade de defesa.
O procurador-geral da República, Augusto Aras, já defendeu o direito do presidente de não prestar depoimento no inquérito. Aras alegou que Bolsonaro pode exercer seu direito de se manter em silêncio, recusando assim a prestar um depoimento tanto presencial como por escrito.
O inquérito contra Bolsonaro no STF é resultado das declarações feitas pelo ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, quando deixou o governo. À ocasião, o ex-juiz da Operação Lava Jato afirmou que o presidente teria tentado interferir no comando da PF e que isso foi um dos principais motivos para o seu pedido de demissão.
A investigação foi aberta a pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, após acusações de Moro de que o presidente queria intervir na Polícia Federal.
Depoimentos e vídeos reforçaram a denúncia do ex-juiz e ajudaram a enfraquecer a versão de Bolsonaro de que não falava sobre intervenção na PF, e sim sobre a sua segurança pessoal.
O foco da investigação, porém, é avançar sobre quais eram os possíveis interesses de Bolsonaro em investigações da corporação e se houve interferência com objetivos políticos nas apurações.
Bolsonaro nega interferência, mas tentou forçar a substituição do chefe da corporação no Rio de Janeiro quatro vezes em menos de um ano e meio. Segundo o ex-ministro da Justiça, o chefe do Executivo pressionou pela mudança em agosto de 2019 e em janeiro, março e abril deste ano.
No pedido de abertura de inquérito, Aras citou oito crimes que podem ter sido cometidos: falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, obstrução de Justiça, corrupção passiva privilegiada, prevaricação, denunciação caluniosa e crime contra a honra. Nada impede, no entanto, que a investigação encontre outros crimes.
Advocacia administrativa: O uso de estruturas oficiais para proteger pessoas próximas, como sugeriu o presidente na reunião do dia 22 de abril do ano passado, é um indício de que ele pode ter se valido do cargo público que ocupa para patrocinar interesse privado perante o Estado.
Ao citar o desejo de "trocar gente da segurança nossa no Rio de Janeiro" porque não queria esperar que prejudicassem "os amigos", além da família, o chefe do Executivo indica a possibilidade de ter cometido o crime de advocacia administrativa.
Em relação aos parentes, Bolsonaro pode alegar que estava se referindo à segurança pessoal, que é garantida por lei ao presidente da República e seus familiares. A proteção, porém, não abrange as amizades do presidente.
Bolsonaro também pode ser enquadrado nesse delito se ficar comprovado que interferiu no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para beneficiar uma obra de um de seus apoiadores, o empresário Luciano Hang, dono da Havan.
Na reunião ministerial de 22 de abril, ele reclama que o órgão "para qualquer obra no Brasil" e citou uma construção de Hang. À coluna Painel a ex-diretora do Iphan Kátia Bogéa disse que foi demitida da função por pressão de Hang e de Flávio Bolsonaro, que teria sido o porta-voz de queixas de empreiteiros baianos sobre a atuação de Kátia. A pena para esse delito é de três meses a um ano.
Obstrução de Justiça: Na entrevista concedida após a divulgação do vídeo, Bolsonaro admitiu que temia a expedição de ordem judicial de busca e apreensão contra seus filhos. Segundo ele, isso poderia ser armado pelo então governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC).
Ocorre que, para uma operação dessa natureza ser realizada, é necessária autorização judicial. E não cabe ao chefe do poder Executivo interferir no trabalho do Judiciário, que analisa eventuais pedidos de busca e apreensão feitos por investigadores da polícia e do Ministério Público.
Na entrevista, Bolsonaro ressaltou que levantou essa possibilidade porque, "graças a Deus", tem "amigos policiais civis e policiais militares do RJ", que o teriam avisado.
Nessa declaração, ele dá a entender que pode ter evitado uma operação policial contra seus filhos -um deles, o senador Flávio Bolsonaro, é investigado pelo MP do RJ sob suspeita de um esquema de "rachadinha" (devolução de salários e desvio de recursos públicos); outro, o vereador Carlos Bolsonaro, é alvo da PF por supostamente articular esquema de disseminação de fake news.
Além disso, a afirmação também pode levar à advocacia administrativa, uma vez que servidores públicos de órgãos de segurança o teriam ajudado sem que prestassem serviço diretamente a ele. A pena para esse crime é de dois meses a dois anos de prisão.
Falsidade ideológica: Bolsonaro pode ter cometido o crime se ficar comprovado que adulterou o "Diário Oficial" da União em relação à demissão de Maurício Valeixo da direção-geral da Polícia Federal.
Ao anunciar que deixaria o governo, Sergio Moro afirmou que não tinha assinado, como constava no ato oficial, a exoneração de Valeixo, que havia sido publicada no mesmo dia pela manhã.
Na ocasião, a exoneração foi publicada "a pedido" e com o endosso de Moro, e Bolsonaro usou as redes sociais para afirmar que essa era uma prova de que não queria interferir na corporação e que a mudança na corporação havia partido do próprio Valeixo. Horas depois, porém, o governo republicou o Diário Oficial sem a assinatura de Moro. A pena prevista para o crime é de um a cinco anos de prisão.
Coação no curso do processo: O presidente não detalhou como levantou com "amigos policiais civis e militares do Rio de Janeiro" que estava sendo "armada" uma operação de busca e apreensão na casa de um de seus filhos. Caso a evolução das investigações aponte que Bolsonaro ameaçou algum servidor para interferir em processo judicial ou policial para blindar seus parentes, porém, pode ficar caracterizada a coação no curso do processo. A pena para esse delito é de um a quatro anos de reclusão.
Sim. Embora tenha prometido publicamente carta branca ao seu ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, para definir os cargos de comando da PF, o presidente demitiu, contra a vontade dele, o então diretor-geral da corporação, Maurício Valeixo, e na sequência mudou a chefia da superintendência do órgão no Rio de Janeiro.
A interferência aconteceu por objetivos políticos nas investigações? Há indícios de que sim. Um deles é que, antes de exonerar Valeixo, Bolsonaro enviou uma mensagem a Moro com o link de uma reportagem com o seguinte título: "PF na cola de 10 a 12 deputados bolsonaristas". Na sequência, escreveu: "Mais um motivo para a troca".
Outro elemento é o próprio vídeo da reunião ministerial em 22 de abril. Num dos momentos, ao reclamar da falta de informações de órgãos diversos, Bolsonaro fala em interferir na PF - inicialmente, o presidente negava até mesmo ter se referido à Polícia Federal no encontro, o que não se demonstrou verdadeiro.
Em outro momento, o presidente reivindicou a troca de "gente da segurança" no Rio para que seus amigos e parentes não fossem prejudicados. A superintendência no Rio conduz investigações relacionadas a um dos filhos de Bolsonaro e alguns de seus aliados.
É atribuição do presidente a nomeação de ministros e de qualquer outro cargo da estrutura do Executivo. O próprio Bolsonaro disse publicamente que queria mexer nos cargos da corporação, mas, para ele, não seria uma interferência. A questão central na investigação é saber se o presidente demitiu o diretor da PF e se forçou a troca do superintendente no Rio por interesses pessoais.
A versão de Bolsonaro de que seu pleito era mudar as equipes do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) no Rio, responsáveis pela proteção dele e de familiares, se mantém? Essa versão está bastante fragilizada. Os fatos indicam que o presidente não estava descontente com o desempenho do GSI na sua segurança pessoal. Tanto que, semanas antes da reunião ministerial, o chefe dessa equipe foi promovido e substituído pelo número dois do grupo.
Outro indicativo de que a explicação não procede ocorreu na reunião ministerial. Ao reclamar da troca de pessoal no Rio, Bolsonaro olha em direção a Moro, então chefe da PF, e não para o general Augusto Heleno, ministro do GSI.
Mais uma evidência é a própria sucessão de eventos após a agenda com os ministros. Dois dias depois da reclamação, foi o então diretor da PF quem o presidente demitiu. Um dos primeiros atos da nova gestão do órgão foi substituir o superintendente no Rio.
A PF no Rio conduzia uma investigação para apurar se o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente, cometeu crimes de lavagem de dinheiro e falsidade ideológica eleitoral ao declarar seus bens para a Justiça Eleitoral.
Também foi a PF no Rio, ao deflagrar a operação Furna da Onça, em 2018, que trouxe à tona relatório de movimentações financeiras atípicas de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio, quando deputado, na Assembleia do Rio.
Esse relatório, do Conselho de Controle de Atividades Financeiras(Coaf ), suscitou investigação do Ministério Público do Rio sobre um suposto esquema de "rachadinha" de salários de servidores do gabinete de Flávio.
Bolsonaro também tem demonstrado contrariedade com as investigações da PF em Minas que concluíram que Adélio Bispo, autor do atentado a faca do qual foi vítima, agiu sozinho. Ele defende a tese de que algum oponente político foi o mandante do crime.
Em mensagem para Moro, Bolsonaro também demonstrou preocupação com o chamado inquérito das fake news, em curso no Supremo, que pode atingir seus aliados políticos.
A preocupação com investigações, desconhecimento sobre processos, síndrome de perseguição, inimigos políticos e fake news são alguns dos principais pontos elencados por pessoas ouvidas pela Folha para tentar desvendar o que há no Rio de interesse a Bolsonaro.
A PGR não afirma, no pedido para apurar o caso, os crimes que podem ser imputados a cada um. Interlocutores de Aras, porém, afirmam que os delitos possivelmente cometidos por Moro são denunciação caluniosa, crime contra a honra e prevaricação.
O ex-ministro reafirmou as acusações feitas ao pedir demissão do Executivo e detalhou sua relação com Bolsonaro. Sobre a intromissão no trabalho da Polícia Federal, Moro revelou que, por mensagem, o presidente cobrou a substituição na Superintendência da PF no Rio de Janeiro.
"Moro você tem 27 Superintendências, eu quero apenas uma, a do Rio de Janeiro", disse Bolsonaro pelo WhatsApp, segundo transcrição do depoimento do ex-ministro à PF. Além disso, ressaltou que o presidente teria reclamado e demonstrado a intenção de trocar a chefia da corporação em Pernambuco.
O ex-juiz da Lava Jato apresentou conversas trocadas por WhatsApp e relatou que Bolsonaro chegou a ameaçá-lo em uma reunião ministerial, que teria sido gravada pelo governo.
O presidente negou interferência na PF e que tenha pedido acesso a relatórios sigilosos. Também acusou o ex-ministro de vazar investigações que corriam sob sigilo a veículos de imprensa e ressaltou que a iniciativa pode se enquadrar na Lei de Segurança Nacional.
"Ele [Moro] tinha peças de relatórios parciais de coisas que eu passava para ele", disse. "E entregava para a Globo. Isso é crime federal, talvez incurso na Lei de Segurança Nacional", afirmou o presidente.
Em dezembro passado, o ministro Alexandre de Moraes decidiu prorrogar por mais 90 dias o inquérito que investiga suposta tentativa de interferência de Bolsonaro na Polícia Federal. O prazo anterior se encerraria em 27 de janeiro.
O magistrado também estendeu por mais 90 dias os inquéritos que apuram a disseminação de fake news e a organização de atos antidemocráticos -ambos atingem pessoas ligadas ao chefe do Executivo.
Moraes é relator dos três casos em curso no Supremo que investigam Bolsonaro diretamente ou seus aliados.
O presidente pode ser denunciado pela PGR e, se a acusação for aceita por dois terços da Câmara dos Deputados e o STF abrir ação penal, ele será afastado automaticamente do cargo por 180 dias, até uma solução sobre a condenação ou não do investigado. Caso o Legislativo barre o prosseguimento das investigações, o processo voltará a correr após ele deixar o mandato.
Notou alguma informação incorreta no conteúdo de A Gazeta? Nos ajude a corrigir o mais rapido possível! Clique no botão ao lado e envie sua mensagem
Envie sua sugestão, comentário ou crítica diretamente aos editores de A Gazeta