Conteúdo verificado: Post do deputado Marco Feliciano (Republicanos-SP) no Facebook afirmando que mais um estudo comprova a eficácia do tratamento precoce da hidroxicloroquina contra o COVID-19. Ele dá o link para um artigo no site Conexão Política sobre um estudo belga que apontou redução na taxa de mortalidade com pacientes de covid-19 tratados com a hidroxicloroquina.
Não é verdade que um estudo belga tenha comprovado a eficácia da hidroxicloroquina no tratamento precoce da covid-19. A afirmação foi feita pelo deputado Marco Feliciano (Republicanos-SP) em sua página no Facebook.
O deputado compartilha o link de um texto do site Conexão Política, sobre um estudo realizado na Bélgica, com 8.075 participantes. A pesquisa realmente existe, mas, apesar de apontar uma redução da mortalidade por covid-19 em pacientes medicados com doses baixas de hidroxicloroquina, é insuficiente para levar a qualquer mudança quanto a recomendação da droga no combate ao novo coronavírus o medicamento continua sem ter sua eficácia comprovada. Além disso, o estudo analisou pacientes em diferentes fases da doença, e não apenas os que receberam a droga no início da manifestação dos sintomas.
O estudo é retrospectivo e foi feito a partir de uma base de dados de pessoas que haviam sido hospitalizadas. Nesse caso, foram analisados pacientes diagnosticados com covid-19 na Bélgica, divididos entre os que foram medicados com a hidroxicloroquina e os que não foram. Em contato com o Comprova, Lucy Catteau, uma das autoras do artigo, disse que, apesar dos resultados, estudos clínicos randomizados quando os dois grupos de pacientes são divididos de maneira aleatória entre os que receberão o medicamento e os que receberão um placebo ainda são necessários para comprovar a eficácia da hidroxicloroquina.
O deputado Marco Feliciano foi procurado, mas não respondeu os e-mails enviados pelo Comprova.
As informações foram verificadas pelo Projeto Comprova, coalizão que reúne 28 veículos de imprensa do Brasil para combater desinformações e conteúdos enganosos na internet. Participaram das etapas de checagem e de avaliação da verificação jornalistas de Folha de S. Paulo, UOL, Jornal do Commercio, Gaúcha ZH, Estadão, Gazeta do Sul, O POVO e NEXO.
Para comprovar a existência da pesquisa, recorremos à ferramenta de busca do Google. O estudo completo foi publicado no site Science Direct. A partir daí, entramos em contato, por e-mail, com os responsáveis pelo artigo apenas Lucy Catteau, uma das principais pesquisadoras, respondeu.
Também por e-mail falamos com o Sciensano, instituto de pesquisa e de saúde pública da Bélgica que opera sob a autoridade dos Ministérios da Saúde Pública e da Agricultura foi a partir dos dados coletados pelo órgão que os cientistas fizeram o estudo.
Depois, procuramos especialistas que pudessem nos ajudar na análise sobre o estudo belga. Falamos por WhatsApp com os infectologistas Guilherme Spaziani, do Instituto de Infectologia Emilio Ribas, de São Paulo, e Leonardo Weissmann, também do Emilio Ribas e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
Também tentamos contato com o deputado Marco Feliciano (Republicanos-SP), que compartilhou a notícia do Conexão Política em suas redes sociais dizendo que o estudo comprovava a eficácia da cloroquina, o que não é verdade. O parlamentar não nos respondeu.
Por último, entramos em contato com o Conexão Política, que afirma em seu título ser o maior estudo retrospectivo envolvendo a hidroxicloroquina e a covid-19. O site nos respondeu por e-mail.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 2 de setembro de 2020. Você também pode refazer o caminho da verificação acessando os links disponíveis nesta reportagem.
Em documento de 14 de agosto, intitulado Procedimento para médicos gerais em caso de suspeita da covid-19, o Sciensano trata de medicamentos que podem ser usados no tratamento e não cita, em nenhum momento, a hidroxicloroquina. Informa que o uso de drogas sem indicação ou experimentais para tratar a covid-19 é reservado a pacientes hospitalizados. E, em texto anterior, que foi revisado em 18 de julho, lopinavir/ritonavir, hidroxicloroquina e bloqueadores IL1/IL6 são drogas registradas na Bélgica para outras indicações (uso off label), a menos que sejam prescritas no contexto de teste clínico.
Ao Comprova, o órgão afirmou que o estudo em questão mostrou uma associação entre baixas doses de hidroxicloroquina e redução da mortalidade, mas, que, a partir do resultado de outros estudos e recomendações internacionais, a hidroxicloroquina não é mais indicada na Bélgica para o tratamento da covid-19, exceto em casos de ensaios clínicos registrados. E completou que os resultados mostram novas hipóteses em relação à ação anti-inflamatória da hidroxicloroquina para a covid-19 e que sem estudo clínico, as recomendações belgas no tratamento da covid-19 não serão colocadas em questão.
O potencial poder anti-inflamatório da droga também foi destacado por Lucy Catteau, uma das autoras da pesquisa. Como a associação entre baixas doses de hidroxicloroquina e redução da mortalidade foi percebida em pacientes tratados cedo ou tarde a partir do surgimento dos sintomas, nós levantamos a hipótese de o efeito da droga não ser antiviral, mas, sim, anti-inflamatório, afirmou ao Comprova.
Os pesquisadores analisaram dois grupos: um que recebeu pequenas doses da droga e, outro, que não recebeu hidroxicloroquina. Entretanto, é possível verificar que há diferenças maiores que 10% entre os dois perfis. Entre os que não receberam, 40,9% tinham problemas cardiovasculares, contra 30,7% no grupo que foi medicado. Além disso, 44,6% tinham mais de 80 anos no grupo sem a droga, enquanto entre os que receberam essa taxa era de 23,6%.
Sobre essa discrepância, a pesquisadora Lucy Catteau afirmou que isso foi levado em conta na análise e que, portanto, não se trata de uma falha da pesquisa. Ela afirma que se trata de um estudo observacional, que não permite nenhuma conclusão sobre a eficácia da hidroxicloroquina. Para provar isso, são necessários os testes clínicos randomizados (os mais confiáveis, como o Comprova já explicou), diz.
Também questionamos a cientista sobre o trecho do estudo citado pelo Conexão Política, que afirma que finalmente, uma análise de sensibilidade rigorosa levando em consideração os dados censurados e o viés imortal, todos confirmaram o impacto positivo da HCQ na mortalidade hospitalar. A pesquisadora afirmou que De fato, as análises estatísticas aprofundadas levando em conta numerosos vieses possíveis foram efetuadas e sempre mostraram uma associação entre a hidroxicloroquina e uma redução da mortalidade em hospitais. Entretanto, para provar a eficácia da hidroxicloroquina, estudos clínicos randomizados são necessários por isso não podemos concluir sobre a eficácia da cloroquina.
O estudo tem 11 autores e um grupo de colaboração sobre vigilância hospitalar. Desses 11, sete trabalham no Sciensano e oito possuem PhD, o título acadêmico mais alto que alguém pode conquistar.
Lucy Catteau, uma das principais autoras, é cientista e trabalha na Sciensano como gerente da EARS-Net, sigla para Rede Europeia de Vigilância de Resistência Antimicrobiana, que é um banco de dados científicos da União Europeia focado em bactérias. Segundo o site Open Researcher and Contributor ID (Orcid), que identifica acadêmicos e pesquisadores, ela tem quatro trabalhos publicados.
O outro autor principal é Nicolas Dauby, especialista em doenças infecciosas do CHU Saint-Pierre, centro hospitalar universitário em Bruxelas referência em novos agentes infecciosos. De acordo com o Orcid Dauby tem 40 artigos publicados dois deles na The Lancet, revista respeitada mundialmente.
O International Journal of Antimicrobial Agents (IJAA), onde o estudo foi publicado, é uma publicação da Sociedade Internacional de Quimioterapia Antimicrobiana, que foi fundada em 1961 e reúne médicos de diversos países.
O periódico é publicado em colaboração com a Elsevier, empresa global de informações analíticas fundada em 1880 e baseada em Amsterdã. Os jornais parceiros, como o IJAA, possuem uma espécie de selo de qualidade de confiança.
Em junho, o Jornal da USP publicou uma reportagem sobre a SciVal, plataforma de pesquisas e análises científicas desenvolvida pela Elsevier. A reportagem destaca que, segundo o Relatório SciVal, 11,6% dos trabalhos produzidos por autores da universidade encontram-se entre as top 10% melhores publicações do mundo.
Em abril, a Sociedade Internacional de Quimioterapia Antimicrobiana teve que se posicionar sobre um estudo do infectologista francês Didier Raoult, que trazia os benefícios da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 a pesquisa foi alvo de críticas da revista Science, referência em estudos científicos, e seus resultados foram questionados e considerados incompletos. Além de a droga não ter eficácia comprovada, um dos coautores, Jean Marc Roulain, é editor-chefe do IJAA. A Sociedade Internacional de Quimioterapia Antimicrobiana declarou que a pesquisa não atendia ao padrão esperado para o periódico.
A pesquisa belga não foi a que contou com o maior número de pacientes. No dia 22 de maio, a renomada revista Lancet publicou um estudo retrospectivo com 96 mil pacientes de 671 hospitais ao redor do mundo.
O estudo da Lancet, no entanto, causou controvérsia depois que um pedido de retratação foi feito por seus autores. Eles diziam não poder mais garantir a veracidade dos dados usados para fundamentar a pesquisa.
No caso do estudo belga, foram utilizados dados de 8.075 pacientes de 109 hospitais do país.
A afirmação de maior estudo retrospectivo foi feita pelo site Conexão Política, que noticiou o estudo. Em contato por e-mail com o Comprova, o site respondeu que com relação à matéria publicada em nosso portal, cabe esclarecer que o termo maior estudo retrospectivo foi utilizado por Didier Raoult. Acrescentou que o uso do termo se dá pelo número de pacientes envolvidos e, também, por ser um estudo nacional, feito em vários hospitais daquele país. A maioria dos estudos do tipo são feitos com pacientes de uma única unidade hospitalar. O estudo mencionado na matéria ocorreu em toda a Bélgica, com milhares de pacientes.
O estudo belga não muda o entendimento sobre a eficácia da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19. O método usado por ele tem baixa qualidade científica, explicou o infectologista Guilherme Spaziani, do Instituto Emílio Ribas, um dos principais locais de combate ao novo coronavírus em São Paulo, em entrevista por WhatsApp com o Comprova.
Os estudos têm vários níveis de qualidade científica. Os melhores são aqueles chamados ensaios clínicos, onde damos um remédio para um grupo e outro grupo recebe um placebo. Depois, analisamos em qual grupo ocorreu mais mortes e mais curas e, assim, entendemos se o remédio é bom ou não, explica.
O estudo belga não realizou ensaios clínicos. No caso deles, foi feita uma pesquisa chamada retroativa, que analisa dados de pacientes para chegar a uma conclusão.
Há vários estudos desse tipo. Pela primeira vez, os estudos científicos estão em evidência para a mídia e a população. Isso é importante para a valorização da ciência, mas a metodologia científica é extremamente complexa. Então, aos olhos leigos, com base nesse artigo, parece que a cloroquina é milagrosa. E isso não é verdade, como já foi comprovado em estudos de boa qualidade, explica Spaziani.
Não estou querendo dizer que o autor é ruim e, por isso, faz um trabalho de baixa qualidade. Mas os melhores estudos e o ensaio clínico é um deles são muito difíceis de fazer. É preciso acompanhar os doentes, convencê-los a tomar um remédio novo ou um placebo, coletar exames. É algo que leva muito tempo. Para fazer esse estudo igual ao belga é só pegar um monte de prontuários, os papéis, analisar e escrever, completou.
O infectologista Leonardo Weissmann reforça que o estudo tem falhas metodológicas e diz que infelizmente, o uso da hidroxicloroquina tornou-se uma discussão política interminável. Segundo ele, o que se pode afirmar no momento é a necessidade de se manter as recomendações para prevenção: distanciamento de pelo menos 1,5 metro de outras pessoas, o uso de máscara por todas as pessoas e a higienização das mãos com frequência.
O uso da cloroquina e da hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19 é amplamente defendido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), mesmo as duas drogas não tendo comprovação científica. Em março, ele ordenou que o Laboratório do Exército produzisse os medicamentos.
A pressão para que as substâncias fossem adotadas no tratamento da covid-19 custou o cargo de dois ministros da Saúde: Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Em maio, já sob a gestão do interino Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde alterou o protocolo e ampliou a possibilidade do uso dos medicamentos para pacientes com sintomas leves até então, eram recomendados apenas em casos graves e com monitoramento em hospitais.
Em agosto, Jair Bolsonaro usou uma de suas lives para defender o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina. Quem não quer tomar cloroquina, não tente proibir, impedir quem queira tomar, afinal de contas, ainda não temos uma vacina e não temos um remédio comprovado cientificamente, disse, ao lado de Pazuello.
Quando o governo chinês publicou novas diretrizes envolvendo o medicamento, Bolsonaro disse em uma live: A nossa cloroquina chegou na China. Vamos ver o que a grande mídia vai falar sobre isso aqui. Um dia depois, a hashtag #mandettagenocida ficou entre os trending topics no Twitter. Apoiadores do presidente atacaram o ex-ministro da Saúde porque ele resistiu a adotar a cloroquina e a hidroxicloroquina no protocolo da doença, como era a vontade de Bolsonaro. O Comprova verificou recentemente as novas diretrizes chinesas.
A terceira fase do Comprova busca verificar conteúdos relacionados às políticas públicas e à pandemia do novo coronavírus. A covid-19 já causou mais de 120 mil mortes no Brasil e ainda não há cura ou vacina para ela. Mentiras e boatos sobre substâncias que ajudariam no tratamento podem ser ainda mais perigosos porque desinformam a população e podem custar mais vidas.
No caso da publicação do deputado Marco Feliciano, ela é prejudicial pois leva a crer que um remédio que não tem eficácia comprovada poderá curar pessoas diagnosticadas com a covid-19, além de incentivar a automedicação, como já observado desde o início das discussões sobre o remédio. A postagem até o momento desta publicação somava 14 mil curtidas, 5 mil compartilhamentos e mais de 1 mil comentários.
Diversos estudos estão sendo feitos para verificar os remédios que podem ajudar no tratamento da covid-19. No caso da hidroxicloroquina, os mais conceituados, aqueles feitos com ensaios clínicos, concluíram que não há eficácia da droga para o novo coronavírus. A própria OMS (Organização Mundial da Saúde) suspendeu os estudos com o medicamento. Em julho, a Sociedade Brasileira de Infectologia divulgou uma nota sugerindo que o medicamento não fosse mais usado no tratamento da covid-19.
O estudo belga tem pouca qualidade científica, segundo os especialistas ouvidos pelo Comprova. Sozinho, não é capaz de comprovar a eficácia da hidroxicloroquina no tratamento da doença.
O Comprova já mostrou ser enganoso que a cloroquina seja capaz de curar 98,7% dos pacientes com covid-19. Também verificou um estudo italiano que, assim como o belga, não confirma a eficácia da droga.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; conteúdo que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
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