Na Amazônia boliviana, não muito longe da fronteira com o Brasil, povos que viveram entre 1.500 anos e 600 anos atrás criaram assentamentos com uma complexa rede de fortificações, estradas, canais e represas, aparentemente controlada do alto de pirâmides de terra batida que ultrapassavam os 20 metros de altura.
Os detalhes dessa civilização perdida, apresentados na última edição da revista científica Nature, devem sepultar de vez a ideia de que o território amazônico era "só mato" antes da chegada dos europeus.
"Essas plataformas e pirâmides eram artificiais desde a base até o topo. Aliás, foram construídas em cima de terraços com até 6 metros de altura, os quais, por si sós, já correspondem a um acúmulo incrível de trabalho", diz Heiko Prümers, pesquisador do Instituto Arqueológico Alemão e coordenador do novo estudo.
Junto com a boliviana Carla Jaimes Betancourt, da Universidade de Bonn (também na Alemanha), Prümers tem trabalhado na região de Llanos de Mojos há cerca de 20 anos, mapeando os sítios arqueológicos da chamada cultura Casarabe, que se espalham por um território de 4.500 km2 (cerca de três vezes a área do município de São Paulo).
Os Llanos de Mojos são formados, em sua maioria, por um tipo de savana periodicamente inundada --algo que, do ponto de vista brasileiro, poderia ser visto como uma mistura do Pantanal com o cerrado, embora a área também conte com trechos de floresta mais densa.
Diversos estudos anteriores já indicavam que a população pré-colombiana da região adotava sistemas sofisticados de manejo do território, como campos elevados artificiais onde podiam plantar mesmo durante as cheias, canais para regularizar a distribuição de água, rampas e estradas que facilitavam o deslocamento na estação chuvosa.
No entanto, a cobertura vegetal ainda densa em boa parte da região costumava atrapalhar as tentativas de ter uma visão de conjunto das modificações feitas pelos povos do passado no território. Por isso, os arqueólogos passaram a se valer do "lidar" (pronuncia-se "láider"), tecnologia que pode ser descrita como um equivalente ao radar que usa lasers.
Os aparelhos de "lidar", a bordo de aviões ou helicópteros, disparam pulsos de laser infravermelho na direção do solo. O tempo que a luz leva para "bater" no chão e ser refletida para os detectores do aparelho, como se fosse um eco, é usada para calcular os detalhes do relevo lá embaixo com grande precisão, permitindo a criação de mapas do terreno que não são atrapalhados pela presença de árvores.
Graças ao "lidar", Prümers, Betancourt e seus colegas conseguiram mapear uma rede de 24 sítios arqueológicos da cultura Casarabe, dois dos quais, batizados de Cotoca e Landívar, têm tamanho de cidades, com 147 hectares e 315 hectares, respectivamente (um hectare corresponde à área de um campo de futebol).
Ambos têm um aparente centro ritualístico ou governamental formado pelos terraços e pelas pirâmides em cima deles. Além disso, eram cercados por três estruturas defensivas concêntricas, formadas por um fosso e uma muralha ou anteparo, também de terra batida.
"Esses centros são o produto de um processo longo. Tal como Roma, não foram feitos num só dia", compara o pesquisador alemão. "Os três 'anéis' de estrutura defensivas no sítio de Cotoca, por exemplo, indicam um remodelamento constante e adaptações causadas por uma população em crescimento."
Além disso, os outros sítios espalhados pela região indicam uma hierarquia de assentamentos com diferentes tamanhos e funções. Algumas das localidades possuem plataformas cerimoniais menores (mas sem pirâmides); outras parecem ser aldeias de porte médio e pequeno. É como se houvesse duas metrópoles, algumas capitais regionais e localidades mais modestas, digamos.
Segundo Prümers, a diversidade linguística e cultural da região hoje é grande demais para que se saiba qual foi o povo responsável pela construção das estruturas. Há indícios de contatos comerciais com a região de Cochabamba, também na Amazônia boliviana, e com a Amazônia brasileira, e ainda com os Andes (no caso, poucos objetos feitos de cobre).
A questão é saber até que ponto as descobertas na Bolívia são realmente únicas no contexto amazônico. Diversas áreas da Amazônia brasileira, como o Alto Xingu e a ilha de Marajó, possuem estruturas monumentais, como grandes estradas, fortificações e até plataformas artificiais feitas para abrigar assentamentos durante as cheias, embora numa escala menor.
"Eu acompanhei essa história desde o começo porque estive na Bolívia em 2019, quando alguns desses sobrevoos foram feitos", conta o arqueólogo brasileiro Eduardo Góes Neves, da USP, um dos principais estudiosos da Amazônia pré-colombiana no país. "O Heiko e a Carla, para mim, são os melhores arqueólogos de campo da Amazônia hoje, e esse trabalho vem coroar o esforço deles. Por enquanto, de fato, é algo único, embora a gente não saiba o que pode vir a aparecer no futuro."
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