Conteúdo verificado: post em um site sobre um estudo feito nos Estados Unidos que teria revelado que 80% dos estados americanos que exigiram o uso de máscaras durante a pandemia provavelmente não conseguiram impedir a disseminação do vírus.
São enganosas as conclusões de um estudo norte-americano sobre a eficácia do uso de máscaras como medida de prevenção à covid-19, publicadas pelo site Crítica Nacional e compartilhadas no Twitter e no Facebook.
Com base no levantamento — que ainda está em fase de pré-print, sem revisão pelos pares –, o site brasileiro afirma que a imposição do uso de máscaras em várias partes dos Estados Unidos não impactou significativamente o número de casos de covid-19 nas mesmas localidades.
Especialistas ouvidos pelo Comprova, porém, alertam que o estudo é limitado, por deixar de analisar variáveis importantes — como a taxa de isolamento da população e a fiscalização do uso de máscaras pelo poder público — e por comparar dados entre grupos heterogêneos.
Atualmente, a utilização de máscaras é recomendada por autoridades sanitárias de todo o mundo como uma das medidas importantes de prevenção à covid-19, além de ventilação adequada e distanciamento físico.
O Comprova entrou em contato com os responsáveis pelo site Crítica Nacional, mas não teve retorno até o término desta verificação.
Primeiramente, acessamos a versão integral e original do estudo mencionado pelo site Crítica Nacional, disponível em inglês na plataforma MedRXiv, para comparar o teor da publicação com o texto em português.
Para entender melhor a pesquisa, e a confiabilidade da conclusão apresentada, o Comprova ouviu dois pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) e buscou respostas junto à Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), que atua como escritório regional da Organização Mundial da Saúde (OMS) para as Américas. Os pesquisadores foram entrevistados por telefone, e o escritório da OPAS em Brasília respondeu ao nosso contato por e-mail.
Consultamos reportagens publicadas na imprensa e diretrizes nos sites de órgãos e autoridades de saúde nacionais e internacionais sobre as formas de contágio do novo coronavírus e as medidas recomendadas para evitar a contaminação.
Por fim, entramos em contato com o site Crítica Nacional, por meio do e-mail disponibilizado na página, mas não tivemos resposta até a publicação deste texto.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 11 de junho de 2021.
O estudo citado pelo site Crítica Nacional foi postado pelos autores Damian D. Guerra, do Departamento de Biologia da Universidade de Louisville, nos Estados Unidos, e Daniel J. Guerra, fundador de uma consultoria biomédica. O perfil do primeiro autor, Damian, disponível na plataforma Google Scholar, não o aponta como responsável por nenhuma outra pesquisa relacionada à pandemia da covid-19.
Segundo o texto, publicado no site MedRXiv, que reúne pesquisas ainda sem revisão dos pares, o objetivo do estudo era analisar a eficácia dos decretos e leis que obrigam o uso de máscaras na redução dos casos de covid-19 nas unidades federativas dos Estados Unidos.
Na análise, os estados foram divididos em três grupos. No primeiro, em que houve determinação inicial de uso de máscaras, foram considerados aqueles em que o equipamento de proteção (que poderia ser qualquer tipo de cobertura facial) já era exigido em pelo menos 50% das cidades antes do dia 20 de agosto de 2020. Os pesquisadores incluíram, sem distinção, os decretos que tratavam da obrigatoriedade apenas em lojas e no comércio ou em todos os locais públicos.
Um segundo grupo, de estados onde as mesmas condições passaram a vigorar depois de 20 de agosto, foi considerado como aquele em que as medidas foram adotadas de forma tardia; e um terceiro grupo de estados não adotou nenhum tipo de ação a nível estadual até março deste ano.
Em seguida, foi feita uma comparação do crescimento dos casos de coronavírus em cada localidade, durante os momentos mais e menos graves da pandemia no país.
Com base nesse levantamento, os autores afirmam que o uso de máscaras não impactou significativamente no contágio pela covid-19, e concluem que o uso do equipamento não deveria ser obrigatório.
A professora de Imunologia da UnB, Anamelia Bocca, foi consultada pelo Comprova, e, após ler o estudo, afirmou que ele peca ao não comparar dois grupos homogêneos. E chamou a atenção para o fato de que um estado ter leis para o uso de máscara não significa adesão dos habitantes. “No Distrito Federal é obrigatório (uso de máscara) e as pessoas fazem festas clandestinas e aglomeram sem máscaras. O outro ponto é comparar o uso de máscaras diferentes”, cita. Anamelia Bocca finaliza lembrando que, atualmente, a discussão é sobre qual é a melhor máscara.
Também a pedido da nossa reportagem, o professor do Instituto de Física da UnB, Tarcísio Rocha, que faz parte do Comitê Gestor do Plano de Contingência em Saúde da Covid-19 da UnB e trabalha com modelos matemáticos de vacina, avaliou a pesquisa repercutida pelo site Crítica Nacional.
Em resumo, Rocha afirma que o estudo é limitado e, portanto, não oferece elementos para se tirar qualquer conclusão. Ao longo da entrevista, ele fez uma lista de variáveis desconsideradas no artigo e que colocam em xeque a credibilidade. “O artigo ainda está na fase pré-print, ou seja, não passou pelo crivo de pares e não está publicado em revista científica. Quando passa pelo crivo e a comunidade científica analisa, vê se é razoável ou não”, explica.
O primeiro ponto destacado por Rocha é que, para chegar à conclusão de que as máscaras não teriam contribuído para reduzir a propagação do novo coronavírus, o autor levou em consideração apenas uma variável: a taxa de crescimento da disseminação do SARS-CoV-2 em estados onde o uso da máscara era obrigatório e onde não era.
Mas para um estudo dessa natureza, seria necessário muito mais do que isso. “É preciso incluir outras variáveis, como a taxa de isolamento, se a população aderiu ou não (ao uso de máscaras), se teve fiscalização do poder público, que tipo de máscara a população desses estados usou, entre outras”, pontua Tarcísio Rocha.
Além de todas essas lacunas, o professor da UnB ressalta que máscara é uma proteção adicional, que reduz as chances de a pessoa se contaminar. Qualquer análise sobre a eficácia desse equipamento de proteção individual precisa ser cuidadosa e levar em conta todas as variáveis. “Caso contrário, é muito fácil errar”.
O Comprova procurou o escritório da Organização Pan-Americana de Saúde -, em Brasília, para saber a posição dela em relação ao estudo. Por meio da assessoria de imprensa, a entidade informou que “não comenta detalhes e nem dá explicações sobre estudos que não foram produzidos por nós”. Disse, porém, que as recomendações da entidade sobre uso de máscaras estão disponíveis neste link.
“As evidências científicas apontadas neste guia mostraram que máscaras são uma medida fundamental para suprimir a transmissão da COVID-19 e salvar vidas. Devem ser usadas como parte de uma abordagem abrangente de ‘Faça tudo’, incluindo manter distanciamento físico de um metro ou mais de outras pessoas, evitar locais com aglomeração e contato próximo, garantir boa ventilação, limpar frequentemente as mãos e cobrir o espirro e a tosse com o cotovelo dobrado”, afirma a entidade, em resposta ao Comprova.
O site que publicou o conteúdo em português não fez nenhuma dessas considerações apontadas pelos especialistas.
Em fevereiro deste ano, o Centro de Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear, que realiza pesquisas dentro da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), conseguiu comprovar que as partículas do novo coronavírus ficam presentes no ar por várias horas, na forma de aerossóis.
Isso significa que, ao contrário do que se pensava nos meses iniciais da pandemia, ainda no ano passado, a maior parte das pessoas é infectada pelas vias respiratórias, quando inala o vírus suspenso no ar. Segundo o Center for Disease Control (CDC), dos Estados Unidos, a possibilidade de contágio por superfícies existe, mas é bem mais baixa. Isso significa que as medidas principais de proteção contra o vírus devem incluir o chamado “tripé de proteção”: distanciamento físico entre as pessoas; ventilação adequada dos ambientes e uso correto de máscaras.
Sobre o último ponto, pesquisadores da USP analisaram diversos tipos de equipamentos de proteção facial, e concluíram que nem todos protegem de forma eficiente contra a covid-19. De acordo com os resultados, publicados na revista científica “Aerosol Science & Technology”, as máscaras mais eficientes, com capacidade de filtrar até 98% das partículas do vírus, se usadas corretamente, são as do tipo PFF2/N95.
Em sua quarta fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre a pandemia da covid-19 ou políticas públicas do governo federal que tenham viralizado nas redes sociais.
A publicação do site Crítica Nacional teve, segundo a plataforma CrowdTangle, mais de 3.500 interações no Facebook e Instagram, além de mais de 2 mil no Twitter.
O uso de máscaras faciais é apontado como uma das medidas de prevenção à covid-19, e é incentivado pela Organização Mundial da Saúde desde o ano passado. Na ausência de medicamentos eficazes contra o vírus e com o ritmo de vacinação lento observado no Brasil, medidas não farmacológicas como essa são essenciais para tentar conter o avanço da doença, que já matou mais de 480 mil pessoas no país.
Apesar de tal importância, o uso da proteção vem sendo repetidamente atacado pelo Presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Recentemente, inclusive, o chefe do executivo afirmou que pode flexibilizar o uso da proteção no país, mesmo que o cenário epidemiológico ainda não permita uma mudança de recomendação do tipo.
Justamente por causa desse sistemático desincentivo ao uso da proteção, as máscaras faciais têm sido, desde o ano passado, tema de inúmeras afirmações falsas, já checadas pelo Comprova. Em novembro, por exemplo, concluímos que um estudo indiano, ao contrário do que insinuava uma deputada, recomendava o uso da proteção; em agosto, classificamos como falsas as alegações de que as máscaras aumentavam o risco de contaminação pelo novo coronavírus.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos ou que induz a uma interpretação diferente da intenção de seu autor; bem como aquele que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
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