A última imagem que Flávia Aparecida Barbosa Coelho, 33, tem do pai são seus restos mortais num saco de lixo preto.
Aos 62, Olavo Henrique Coelho era o funcionário mais antigo da Vale na Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG). O técnico de infraestrutura trabalhava no local havia 40 anos.
"Você vê o pai sair de casa e depois fica na memória um saco preto. A gente não sabe nem o que tinha dentro", afirma Flávia.
Como seguir em frente diante desse trauma é pergunta comum aos familiares e amigos das 270 pessoas que morreram há um ano, no rompimento da Barragem 1.
Flávia buscou a religião para se sustentar e foi durante uma missa, na Igreja Matriz de São Sebastião, o padroeiro da cidade, que lhe veio a ideia de doar parte da indenização para terminar a construção de outra igreja, a de São Francisco de Assis.
"A ideia é que a população de Brumadinho, que está passando pelo que eu estou passando, consiga se reerguer e não cair em depressão com esse cenário de guerra. Um dos lugares que as pessoas podem buscar para ter essa força é na casa de Deus, um lugar acolhedor", afirma.
A igreja que estava sem acabamento, de cor cinza com o reboco aparente, ganhou revestimento, pintura amarela e telhado. Antes, a chuva que se acumulava na laje provocava goteira durante a missa e gerava preocupação com aumento da dengue.
A obra estava parada havia cinco anos. Pelo ritmo normal de arrecadação, seriam necessários mais sete anos para que fosse concluída.
Flávia não quer revelar quanto doou para a igreja, mas diz que o fez no mesmo dia em que recebeu a indenização da Vale pela morte do pai, em setembro.
A doação deu conta de finalizar toda a parte externa. Já o interior não está completo: só tem uma mão de tinta branca, altar simples, bancos antigos e cadeiras de plástico; falta o piso, que está no concreto. Para concluir o restante, a comunidade vende pastéis às segundas-feiras.
Flávia afirma que a doação foi espontânea --não houve pedido da igreja pela verba. Pelo contrário, a comunidade paroquial custou a acreditar que era verdade.
"Eles acharam que podia ser uma fraqueza emocional. Tivemos mais de sete reuniões conversando pra ver se era aquilo mesmo que eu queria, eles me explicando que o valor seria alto", conta Flávia.
Até agora, ela não tinha aparecido para a comunidade da igreja como a doadora. Os fiéis sabiam o milagre, mas não o santo. "Pra mim foi normal doar, porque nunca me faltou nada, Jesus deu pra gente tudo. Não é nem como se fosse uma devolução, porque o que a gente tem é muito mais do que estamos fazendo aqui. Eu acho até muito pouco essa doação", diz.
Os planos de Flávia para reerguer a cidade vão além da obra da igreja. Ela quer aproveitar a estrutura das paróquias de Brumadinho para organizar encontros, atividades e visitas em que as pessoas atingidas pelo rompimento da barragem possam conversar e trocar as dores.
"Fazer um trabalho para reconstruir Brumadinho, não ficar nessa luta, não ficar questionando Vale, porque a gente já participou das audiências para que se faça a justiça, mas o que a gente busca é reconstruir a nossa cidade. Não mudar daqui jamais. Ajudar as pessoas que estão à base de remédio depressivo", afirma.
Apesar do foco em tocar a vida, Flávia ainda sente o peso da tragédia e se revolta com a Vale, que era sua segunda casa. Ela nasceu e viveu na Mina do Córrego do Feijão até os 14 anos.
Sua família morava na Ferteco, a vila dos funcionários da mina, bem ao pé da barragem, que foi reformada para ser a sede administrativa da mineradora. Centenas de funcionários morreram ali, nos escritórios e no restaurante.
Além do pai, ela perdeu três primos e diversos conhecidos. O irmão escapou por pouco: seu turno acabava às 10h30, duas horas antes do rompimento. A própria Flávia, que é técnica em segurança do trabalho, era funcionária da Vale até dois anos atrás, quando passou a trabalhar na prefeitura para ficar mais perto das filhas, que têm 9 e 4 anos.
"Eu que nasci e cresci ali não consigo identificar nenhuma estrada mais, está totalmente devastado. A minha mente sabe que eles ficaram lá, a gente vai lá, sabe que aconteceu, mas parece um filme, uma história de terror, porque não tem como compreender", diz ela.
"A empresa resolveu deixar a morte chegar pra eles. Pra ela era menos custoso pagar a indenização do que parar essa mina de dinheiro. Por conta dessa ganância, eles foram deixados à morte igual animal no abatedouro", completa.
Na família de Flávia, era sabido que a barragem iria estourar a qualquer momento. "Meu pai falava muito pra tirar o povo de lá, mas chegava de cabeça baixa em casa, porque eles respondiam que ele não tinha capacidade nenhuma pra falar nada sobre barragem, porque ele não tinha estudo."
"A parte superior da empresa acalmava os funcionários: 'não é assim do jeito que vocês estão pensando, a gente tem engenheiros, estamos acompanhando'. Foi todo mundo enganado", desabafa Flávia.
Seu pai e seu irmão, em 2018, chegaram a ser buscados em casa de madrugada para tampar vazamento da barragem com sacos de areia.
"Ele falava que preferia ir e tentar ser ouvido do que largar e ver a segunda família dele embaixo daquela lama", diz Flávia. Para ela, hoje seu pai estaria morto de qualquer forma. Caso não estivesse na mina às 12h28 do dia 25 de janeiro de 2019, já teria morrido de desgosto pelo que aconteceu.
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