A flexibilização das regras de negociações comerciais do Mercosul se converteu em um ponto de atrito entre o Ministério da Economia e o Itamaraty.
De acordo com relatos feitos à reportagem, o Ministério das Relações Exteriores vem levantando objeções à proposta de que os membros do Mercosul sejam liberados para negociar tratados comerciais de forma independente.
A ideia foi lançada oficialmente pelo Uruguai e conta com forte respaldo do ministro Paulo Guedes (Economia), que considera a obrigação de que os integrantes do bloco negociem conjuntamente uma trava para sua agenda liberal e para a inserção do Brasil nas cadeias globais de produção.
Embora o governo Jair Bolsonaro tenha sinalizado que apoia a linha uruguaia, o tema não é totalmente unificado dentro da administração.
Diplomatas a par do assunto apontam restrições e destacam que uma flexibilização precisa estar acompanhada de regras que impeçam distorções no bloco.
O argumento é que, em caso de flexibilização, o Brasil ficaria exposto à entrada em seu território de mercadorias em situação desleal de competição caso um dos sócios celebrasse um acordo comercial de forma independente.
Como boa parte dos produtos no Mercosul circula pelos quatro países com impostos reduzidos, tratados comerciais fechados de forma individual abririam brecha para triangulações -o risco de uma mercadoria de fora do bloco entrar no Brasil como se fosse de um dos sócios.
A preocupação é justamente com o Uruguai, que há anos pede liberdade para realizar entendimentos do tipo com Estados Unidos e China.
A divergência de opiniões dentro da administração Bolsonaro foi notada por negociadores dos outros países, que consideram a posição do Brasil pouco clara sobre o tema.
A Argentina e o Paraguai, por exemplo, são contrários à flexibilização e esperam que a resistência do Itamaraty leve o Brasil a abandonar a ideia.
Os argentinos temem o impacto da medida sobre o seu setor industrial. Já os paraguaios consideram que, sem o lastro das maiores economias do Mercosul, não terão influência para conseguir um lugar nas mesas de negociação ao redor do mundo.
Os obstáculos para Guedes vão além do Itamaraty. Com forte influência no Congresso, o setor industrial brasileiro é contrário à flexibilização.
"A CNI (Confederação Nacional da Indústria) acredita que os acordos comerciais precisam estar no centro da estratégia do Mercosul e que devem, prioritariamente, ser negociados pelos quatro países conjuntamente, porque o bloco ganha mais força nesse processo", diz a entidade em nota.
Para membros do Ministério da Economia, a situação econômica fragilizada da Argentina prejudica a inserção internacional do bloco.
Em abril do ano passado, os argentinos anunciaram que deixariam de participar das tratativas para acordos do Mercosul, com exceção das conversas com a União Europeia e a Efta (Associação Europeia de Livre Comércio).
Nesse contexto, Guedes defende que o Brasil tenha autonomia para seguir com negociações próprias.
"Achamos importante que haja essa liberdade de negociação para que os dois, três ou quatro membros tenham a possibilidade de achar o que for mais conveniente", disse Guedes em audiência no Senado em abril deste ano.
"Às vezes, avançar [na abertura comercial] é permitir velocidades diferentes a quem está mais preparado e mais disposto a fazer esse avanço."
As chamadas regras de relacionamento externo do Mercosul devem ser debatidas em uma reunião ministerial de países do bloco em Buenos Aires.
O encontro estava previsto para esta terça-feira (8), mas a falta de consenso levou ao adiamento. A expectativa é que ele seja realizado na semana de 21 de junho.
Os ministros presentes também tentarão chegar a um acordo sobre a redução da TEC (Tarifa Externa Comum), uma espécie de imposto de importação partilhado pelos quatro governos. Esse tema, novamente, opõe as duas maiores economias do Mercosul.
Guedes tentou levar adiante um ambicioso corte de 50% nas tarifas, mas teve de recuar após reação da indústria brasileira.
A Economia então encampou uma nova proposta, de redução de 20% em duas etapas até o final deste ano. Mas os argentinos consideram o índice radical demais, e os prazos de aplicação, insuficientes.
Como contraproposta, o governo Alberto Fernández sugeriu uma redução da TEC sobre bens intermediários, o que preservaria os produtos finais. A equipe de Guedes não aceitou, por considerá-la tímida e pouco ambiciosa.
Segundo interlocutores, os dois governos tentam chegar à reunião em Buenos Aires com um modelo intermediário, que permita o acordo.
Como a revisão da TEC conta com apoio de Brasil, Paraguai e Uruguai, pessoas a par do tema dizem acreditar que há chances reais de um entendimento nas próximas semanas.
O Itamaraty e a Economia tampouco estão plenamente alinhados nos debates da TEC.
Guedes tem demonstrado pouca disposição em ceder, enquanto a chancelaria, internamente, tem a avaliação de que a solução deverá ser um meio-termo entre as ofertas brasileira e argentina.
O governo Fernández recentemente fez uma ofensiva contra um corte amplo nas tarifas ao buscar apoio dos ex-presidentes Lula (PT) e FHC (PSDB).
"Concordarmos com a posição do presidente da Argentina, Alberto Fernández, de que este não é o momento para reduções tarifárias unilaterais por parte do Mercosul, sem nenhum benefício em favor das exportações do bloco", disseram os dois ex-presidentes, em nota.
"Concordamos também que é necessário manter a integridade do bloco, para que todos os seus membros desenvolvam plenamente suas capacidades industriais e tecnológicas e participem de modo dinâmico e criativo na economia mundial contemporânea."
Em reunião entre Guedes e representantes da indústria no fim de maio, empresários voltaram a pedir cautela do governo na abertura comercial. O ministro, no entanto, argumenta que a atual proposta de sua equipe prevê uma mudança leve e que não prejudica a indústria nacional. "Não vamos derrubar a indústria brasileira em nome da abertura comercial", disse na ocasião.
Hoje, a alíquota média da TEC está em 13,4%, de acordo com o Ministério da Economia. Pela proposta de Guedes, o primeiro corte levaria o percentual médio a 12,06%. Depois, na segunda redução, a TEC cairia para 10,85%. A variação total, portanto, seria de 2,55 pontos percentuais.
Procurados, Ministério da Economia e Itamaraty não haviam se pronunciado até a conclusão deste texto.
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