Depois do protagonismo do Congresso em grau poucas vezes visto, o isolamento do governo Jair Bolsonaro (sem partido) gerou outro fruto político inusual: a união da maioria dos governadores em um polo organizado de poder. O grupo deixou de tratar só de temas tributários triviais, como a disputa sobre o ICMS dos combustíveis, e passou para a ação institucional.
O próximo alvo de atuação imediata é a área de segurança pública, na qual o incidente em que o senador Cid Gomes (PDT-CE) foi baleado por policiais grevistas na quarta (19) foi visto com um alerta.
Segundo governadores ouvidos pela reportagem, há o temor de que setores policiais, em especial algumas PMs, sejam insuflados contra os Executivos locais por apoiadores das franjas mais radicais do bolsonarismo - quando não por integrantes do próprio governo federal.
Fazem parte da turma 20 dos 27 governadores, justamente os signatários da carta desta segunda (17) em que criticavam Bolsonaro por ter associado um deles, Rui Costa (PT-BA), às circunstâncias nebulosas da morte do miliciano Adriano da Nóbrega. O ex-PM era ligado ao filho presidencial Flávio, sob investigação.
Esse colegiado não é integrado pelos três governadores do PSL, partido pelo qual o presidente se elegeu, e outros aliados como Ronaldo Caiado (DEM-GO).
De forma pontual, o grupo recebe apoio desses governistas: numa nota criticando o desafio lançado por Bolsonaro para que estados reduzissem o ICMS dos combustíveis, quatro deles (MT, RR, SC e PR) seguiram a maioria.
Oficialmente, o espaço de discussão é o Fórum Nacional de Governadores, que se reúne periodicamente -o último encontro foi na semana passada e o próximo, provavelmente, em 17 de abril.
Mas o fato é que o debate é todo online, em um grupo de WhatsApp criado por sugestão do governador João Doria (PSDB-SP) no ano passado. Foi ali que circularam e foram aprimorados os textos críticos ao governo.
O tucano também articulou a criação do Cosud, um conselho que reúne os chefes do Executivo do Sudeste e do Sul, estreitando laços na região que soma 71% do PIB do país. O grupo se reunirá na semana que vem em Foz do Iguaçu.
Em 2019, quando Bolsonaro ainda estava em "test-drive" político como presidente, as queixas costumavam ficar restritas às conversas virtuais.
Em outubro, os oito governadores nordestinos divulgaram nota de apoio a Paulo Câmara (PSB-PE), chamado de espertalhão pelo presidente, mas o ato foi visto como um reflexo do caráter oposicionista deste subgrupo.
A cristalização do cenário político polarizado, contudo, estimulou a encarnação das ideias em notas e entrevistas de maior peso.
Mesmo agora, apesar das articulações, o tom do embate é modulado pelo fato de que muitos estados dependem de repasses e convênios da União para tocar suas políticas. A realidade econômica tende a ser o limite da pressão política.
A carta desta semana foi o exemplo mais vistoso até aqui da nova tática. "Isso é inédito", disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso à Folha de S.Paulo. Para ele, o espaço deixado propositalmente por Bolsonaro em sua articulação política leva à ação coordenada.
Esse vácuo, por inabilidade ou tática de marketing político de independência da dita velha política, acabou abrindo espaço ao longo do ano passado para o Congresso liderado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Secundado pelo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), Maia comandou a aprovação da reforma da Previdência e fez avançar outros temas na economia, além de barrar ou modular iniciativas polêmicas do Planalto.
De forma nominal, o Congresso é simpático à agenda econômica de Bolsonaro, ou do ministro Paulo Guedes, como qualquer líder de bancada prefere dizer.
Mas o norte político não está no Planalto, cujo ministro responsável pelas negociações, Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), já admitiu as dificuldades. Ele é um dos três generais com assento no Planalto, movimento de militarização reforçado com a ida de Walter Braga Netto para a Casa Civil.
E há incidentes mais sérios, como as altercações entre Maia e o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional.
Com isso, governadores com maior densidade política viram um exemplo a ser seguido. A interlocução com Maia e Alcolumbre está afinada, e a expectativa é que pontos importantes da reforma tributária -o projeto do Congresso, não o do governo- avancem, apesar do calendário das eleições municipais de outubro.
Historicamente, o relacionamento entre estados no Brasil é pautado por disputas em temas como incentivos para empresas, a famosa guerra fiscal, e questões de transbordo de criminalidade.
Agora, como definiu um integrante do fórum, há uma aliança política que vai do PCdoB (MA) ao Novo (MG). Coisas curiosas saem daí: a ideia da nota apoiando Rui Costa veio de Wilson Witzel (PSC-RJ), um antipetista ferrenho.
Tal unidade atende a interesses específicos, o que na prática garante seu prazo de validade: a campanha presidencial de 2022, isso se já não houver curtos-circuitos no pleito deste ano por divergências ideológicas.
Ali, Doria pretende estar na urna eletrônica. Um subproduto de seu protagonismo na articulação do grupo é um processo de atenuação da sua imagem de político paulista e autocentrado, segundo a reportagem ouviu de dois governadores de partidos adversários ao PSDB.
Essa nacionalização do perfil cai bem na busca por alianças, em especial se a hipótese colocada for a de um Doria presidente e seu hoje colega, um governador reeleito em 2022. Política é expectativa de poder.
Witzel é outro que já disse querer disputar a Presidência, e o nome de Eduardo Leite (PSDB-RS) tem entrado na composição de equações em vários quadrantes, o que levou Doria a aproximar o jovem gaúcho de 34 anos de si, enquanto a velha guarda do partido gostaria de vê-lo disputando espaço com o paulista.
O paulista e o fluminense selaram uma trégua, tendo identificado Bolsonaro como o adversário no momento -ambos foram eleitos com a ajuda do voto conservador que elegeu o presidente. No próximo domingo, em pleno Carnaval, Doria almoçará com Witzel no Palácio Laranjeiras, sede do governo do Rio.
Essa busca por objetivos comuns não torna as relações impermeáveis a crises. Na discussão sobre a situação fiscal que começa a se refletir nas demandas das polícias, o aumento prometido por Romeu Zema (Novo-MG) de 41,7% à categoria caiu como uma bomba no grupo.
Não faltaram governadores criticando a ideia de gerar uma replicação da pressão por reajustes Brasil afora, ainda mais vindo de um estado em situação econômica precária.
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