BRASÍLIA - O chefe da inteligência da Receita Federal no início da gestão Jair Bolsonaro (PL) foi demitido do cargo público de auditor fiscal nesta quinta-feira (5) por decisão de Fernando Haddad (Fazenda).
Portaria assinada pelo ministro e publicada no Diário Oficial da União afirma que Ricardo Pereira Feitosa se valeu do cargo "para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública". Pela lei, ele não pode obter nova investidura em cargo público federal pelo prazo de cinco anos.
A Folha de S.Paulo revelou em fevereiro deste ano que em 2019 Feitosa, então chefe da inteligência da Receita, acessou e copiou de forma imotivada dados fiscais sigilosos do coordenador das investigações sobre o suposto esquema das "rachadinhas" (o então procurador-geral de Justiça do Rio Eduardo Gussem) e de dois políticos que haviam rompido com a família Bolsonaro, o empresário Paulo Marinho e o ex-ministro Gustavo Bebianno.
Em uma segunda reportagem, a Folha de S.Paulo mostrou que o então chefe da Receita foi ao Palácio do Planalto na véspera de iniciar a devassa ilegal e voltou ao local no dia em que concluiu o trabalho, indo especificamente ao gabinete de Augusto Heleno, então ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.
Nesses dias, não há na agenda pública oficial de Bolsonaro ou do general Heleno registro de compromisso com Ricardo Pereira Feitosa, que coordenou o setor de Pesquisa e Investigação do Fisco de maio a setembro de 2019.
Após a revelação do caso, a Polícia Federal abriu investigação.
O caso da devassa nos dados dos desafetos de Bolsonaro começou a ser investigado pela Receita em um procedimento preliminar, em janeiro de 2020, ainda no governo Bolsonaro.
Em uma segunda etapa, foi instaurada uma sindicância investigativa em março do mesmo ano, que concluiu pela abertura de um PAD (Processo Administrativo Disciplinar).
O PAD, que é a fase mais gravosa de procedimentos administrativos no funcionalismo, com penas que vão de advertência a demissão do serviço público, recomendou a demissão de Feitosa do serviço público. A decisão final cabe ao ministro da Fazenda.
A reportagem procurou Feitosa e sua defesa na manhã desta quinta e aguarda posicionamento. Em manifestações anteriores, eles negaram ter havido devassa ilegal nos dados fiscais.
Augusto Heleno afirmou, também em manifestação anterior, que nunca teve conhecimento de acessos ilegais na Receita e disse não se lembrar de encontros com Feitosa nas datas coincidentes com os acessos ilegais.
Bolsonaro publicou na época da revelação do caso uma reprodução do título de reportagem em suas redes sociais, acrescentando a inscrição "fake news".
Documentos obtidos pela Folha de S.Paulo no início deste ano e depoimento de pessoas diretamente relacionadas ao caso mostram que Ricardo Pereira Feitosa acessou de forma imotivada os dados nos dias 10, 16 e 18 de julho de 2019, primeiro ano da gestão Bolsonaro (2019-2022).
Não havia nenhuma investigação formal em curso na Receita contra essas três pessoas.
O procurador Eduardo Gussem chefiou o Ministério Público do estado do Rio de Janeiro de 2017 a janeiro de 2021, período em que o órgão recebeu, durante investigação, relatório produzido pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) indicando movimentação financeira atípica de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio.
Marinho e Bebbiano, que se tornaram amigos próximos, participaram do comando da campanha de Bolsonaro em 2018.
O primeiro cedeu sua mansão no Jardim Botânico do Rio para ser quartel-general e estúdio de gravações da campanha, tendo também integrado e sido eleito primeiro suplente de senador na chapa de Flávio Bolsonaro.
O segundo coordenou a campanha presidencial do capitão, como ele gostava de chamar Bolsonaro, e, depois, virou ministro da Secretaria-Geral da Presidência.
Ambos, porém, romperam ou se distanciaram dos Bolsonaro logo no início da gestão. Bebianno morreu em março de 2020, vítima de infarto, de acordo com a família.
Os documentos e informações obtidos pela Folha de S.Paulo mostram que o chefe da inteligência da Receita acessou e extraiu cópia das declarações completas de Imposto de Renda do procurador Eduardo Gussem relativas a sete anos — 2013 a 2019.
O Ministério Público do Rio denunciou Flávio e Queiroz em outubro de 2020, mas o caso teve reviravoltas favoráveis ao senador, com o STJ (Superior Tribunal de Justiça) anulando em 2021 todas as decisões tomadas pela primeira instância da Justiça.
De Bebianno também foram acessados e extraídos, entre outros, os dados do IR relativos a sete anos, de 2013 a 2019.
Já Marinho teve os IRs de 2008 a 2019 acessados (a exceção de 2012) e copiados. Sua mulher, Adriana, os de 2010 a 2013.
O então chefe da inteligência da Receita vasculhou dados dos desafetos de Bolsonaro em outros três sistemas sigilosos da Receita, um que reúne ativos e operações financeiras de especial interesse do Fisco, um de comércio exterior e uma plataforma integrada alimentada por 29 bases de dados distintas.
No sistema de comércio exterior, houve acesso também à empresa ABM Consultoria, que tem a mulher de Marinho como sócia-administradora.
Ricardo Feitosa trabalhava no escritório da Receita em Cuiabá antes de assumir o cargo de chefe nacional da inteligência do órgão, em 21 de maio de 2019.
Em 23 de setembro daquele mesmo ano, ou seja, com apenas quatro meses na função, foi exonerado do cargo e transferido para a Alfândega do Aeroporto Internacional de Brasília. Depois, ele cumpriu a função de auditor fiscal da administração aduaneira da Receita em Cuiabá.
Em 2020, a defesa de Flávio Bolsonaro mobilizou vários órgãos do governo do pai justamente sob a afirmação de que havia um esquema de acesso ilegal de seus dados fiscais, o que teria embasado a produção do Relatório de Inteligência Financeira do Coaf que deflagrou o caso das "rachadinhas".
A Receita chegou a solicitar uma devassa em seus sistemas para tentar identificar acessos ilegais a dados fiscais do presidente, de seus três filhos políticos, de suas duas ex-mulheres e da primeira-dama, Michelle.
Como também revelou a Folha de S.Paulo, de outubro de 2020 a fevereiro de 2021 o órgão também mobilizou por quatro meses uma equipe de cinco servidores para apurar a acusação feita por Flávio. A conclusão foi a de que não havia indícios de atos ilegais de auditores contra o clã Bolsonaro.
O caso de Feitosa gerou um embate interno entre o então corregedor da Receita Federal, João José Tafner, e o atual chefe do órgão, Robinson Barreirinhas.
Tafner, que chegou ao cargo em janeiro de 2022 pelas mãos da família Bolsonaro, fez uma denúncia interna de que havia sofrido pressão do antigo comando do Fisco na investigação contra o ex-chefe de inteligência do órgão.
Barreirinhas determinou investigação contra Tafner por possível ato de prevaricação, uma vez que não denunciou o caso ou tomou providências à época das supostas pressões. O então corregedor pediu exoneração.
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