Por analogia, diz o voto do ministro Celso de Mello, é possível enquadrar como crime de racismo (previsto na Lei 7.716/89) toda discriminação ou preconceito (descrito nesta lei) relacionado à orientação sexual (homofobia) ou identidade de gênero (transfobia). (Com informações obtidas por meio do blog do Repórter Fausto Macedo para o Estadão)
Velha lição de direito penal diz que não se pode admitir crime por analogia (aplicar uma lei penal prevista para o caso A ao caso B). A lição continua intacta, porém, com uma exceção: quando há recalcitrância discriminatória (comprovada) do legislador de cumprir o seu papel de proteção dos direitos da pessoa previstos na Constituição.
A Constituição não quer nem excesso, nem proteção insuficiente dos direitos das pessoas. Nem mais, nem menos.
O que está proibido se fazer tendo como motivação a raça, a cor, a procedência, a etnia e a religião, também está vedado por razões de orientação sexual (nascer com um sexo e ter distinta orientação homofobia) ou identidade de gênero (nasce com um sexo, mas assume outra identidade transfobia).
O legislador, em 1989, quando legislou sobre o racismo, fez referência a várias motivações discriminatórias (raça, cor, etnia, religião, procedência), mas deixou a lacuna da orientação sexual ou identidade de gênero. Houve omissão legislativa.
Depois, desde o começo dos anos 2000, tudo se tentou para suprir a lacuna (vários projetos de lei foram iniciados), mas o legislador brasileiro não avançou nada no assunto. Omissão imperdoável, diz o ministro Celso de Mello.
A decisão do ministro representa um ativismo judicial, mas, no caso, não é injustificado, porque é patente a recusa do legislador em cuidar da matéria.
Duplo é o significado da decisão:
(i) o legislador não pode praticar abuso nem sequer na omissão. Ninguém pode abusar do seu poder (nem por ação, nem por omissão). Ele não pode ser um omisso recalcitrante, teimoso, persistente; diante dessa omissão reiterada, o Supremo vai suprir a omissão, aplicando algum texto análogo do ordenamento jurídico;
(ii) mesmo quando a política do governo (de plantão) procure ignorar ou desconsiderar as ofensas homofóbicas ou transfóbicas, o que interessa é a política de Estado e a Constituição.
Ou seja, tudo tem limite, que é assumido pelos governos quando, na posse, se comprometem a respeitar a Carta Maior.
Até que o legislador cuide da matéria, vale decisão do STF, mas ainda restam 10 votos pela frente. Vamos ver o que, no final, ficará decidido.
O que a lei pune é a discriminação, ou seja, um ato, uma ação contra uma pessoa ou um grupo de pessoas. O preconceito é uma mera crença sobre determinado grupo ou pessoa. O racismo é uma crença de que uma raça é superior a outra. Enquanto os dois últimos são meras crenças, a discriminação é um ato.
As pessoas são muitas vezes preconceituosas ou racistas, mas não externam isso. As pessoas pensam às vezes que uma raça vale mais que a outra, que os homossexuais são isso ou aquilo. O problema legal e jurídico está na exteriorização da crença, porque aí entra a discriminação, que é crime.
Nenhum grupo está autorizado a oprimir outro pelas motivações citadas. Toda discriminação tem a ver com a dominação (política). É inconcebível qualquer tipo de dominação discriminatória. Para a Constituição, não há hierarquia entre os grupos.
Para o ministro Celso de Mello a punição da discriminação sexual não afeta a liberdade religiosa. As duas podem conviver. E sempre que houver qualquer tipo de discriminação religiosa a lei penal deve também ser aplicada.
Para o ministro citado (i) não há direito absoluto; (ii) a proteção de um direito não afasta a liberdade religiosa; (iii) é inaceitável a submissão das minorias à vontade das maiorias, posto que isso não é tolerado em um Estado Democrático de Direito; ((iv) é crucial a fiel execução da Constituição; (v) não podemos aniquilar a essência do Estado de Direito; (vi) é intolerável qualquer tipo de exclusão ou preconceito (discriminação) contra comunidades vulneráveis política, jurídica e socialmente; (vii) o STF tem o papel institucional de preservar os direitos das minorias que participam da soberania popular; (viii) a Constituição não pode ser meramente formal; (ix) cabe ao STF assegurar os direitos individuais; (x) o STF tem a exata percepção da realidade de preconceito e tem o dever institucional de zelar pela integridade dos direitos fundamentais; (xi) o STF não pode falhar nas atribuições que lhe foram conferidas pelo legislador constituinte; (xii) os poderes devem cumprir sua missão institucional inadiável para conferir efetividade aos direitos essenciais da pessoa humana.
A Constituição Federal fundamenta as conclusões do ministro Celso de Mello: o art. 3º, inciso V, da CF considera objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ninguém pode ser privado de direitos por motivos de orientação sexual ou identidade de gênero. O nosso sistema político jurídico constituído pela CF torna inaceitável qualquer atitude que discrimine por orientação sexual ou identidade de gênero.
Numa sociedade pluralista e democrática, as diferenças devem se igualar por meio da Lei. É a Lei que impede que as comunidades minoritárias sejam tratadas de forma discriminatória.
*Luiz Flávio Gomes, deputado, criador do movimento Quero um Brasil Ético. Doutor em Direito Penal, jurista e professor. Publicou mais de 60 livros, sendo o seu mais recente O Jogo Sujo da Corrupção.
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