O terno e a gravata dividem lugar com cocares e colores tradicionais. Em vez da sala fechada, a amplidão da aldeia e a força dos rituais sagrados. Quando chegou a hora de receber a carteirinha da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o cacique Jorge Tabajara, 37, não pensou duas vezes: decidiu levar a solenidade à aldeia Imburana, comunidade de Poranga, no Ceará, onde ele cresceu e se firmou como liderança.
"Tantas vezes eu saí da minha aldeia chorando, pensando no risco da cidade grande e da nossa situação de vulnerabilidade. Então, quis retornar e ter o meu povo como testemunha de que o sofrimento e o sacrifício valeram a pena."
O advogado faz parte de uma geração de indígenas que encontrou no direito uma forma de defender as garantias que a Constituição prevê aos povos originários. São profissionais que muitas vezes se veem obrigados a sair de suas aldeais para conseguir estudar, mas voltam levando a carteirinha da OAB e a vontade de proteger seus territórios.
Foi esse o caso de Jorge, que precisou morar em Caucaia, na região metropolitana de Fortaleza, para cursar direito na capital cearense. Embora estivesse distante de sua comunidade, continuou lutando por ela. O indígena diz que, não raro, precisou sair durante as aulas para participar de ações contra a presença de posseiros nos territórios de seu povo.
Quatro anos após ter conseguido a carteirinha da OAB, o cacique ajudou a fundar no ano passado o escritório Ybi - palavra que significa terra, chão que se pisa, em tupi. Considerado o primeiro escritório de direito indígena do Ceará, nasceu para prestar assistência aos povos originários do estado, que abriga pouco mais de 26 mil indígenas, divididos em 14 etnias. "Hoje, a defesa do nosso direito não é feita mais com o arco e com a flecha. Hoje, se não nos apoderarmos do ordenamento jurídico do nosso país, certamente seremos enganados. Vivemos em um Estado que veda os olhos quando a questão é direito indígena."
Desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, a regularização de terras indígenas está travada. Ainda durante a campanha, o mandatário disse que não haveria mais demarcação desses territórios no que dependesse dele.
Segundo um relatório do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) divulgado no ano passado, o presidente de fato não homologou nenhuma terra indígena desde que assumiu, fato inédito entre os presidentes pós redemocratização. A Constituição diz que é dever da União demarcar esses territórios.
Em nota, a Funai (Fundação Nacional do Índio) diz aguardar uma definição do STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o parecer nº 001/2017 e o recurso extraordinário nº 1017365 - ambos versam sobre a tese do marco temporal. "A Funai entende que tal indefinição deixa um vácuo regulamentar que resulta em insegurança jurídica, o que a impede de dar seguimento aos processos de demarcação em curso."
Ambientalistas e lideranças indígenas temem que, se aprovado, o marco temporal imponha ainda mais entraves à demarcação. Segundo essa tese, os indígenas só teriam direito aos territórios que ocupavam no dia 5 de outubro de 1988, data em que foi promulgada a atual Constituição. Eles argumentam, porém, que muitos povos foram expulsos de seus territórios antes desse período e que eles ficariam sem a possibilidade de reavê-los.
Uma das lutas de Samara Pataxó, 32, é justamente contra essa tese. Nascida na terra indígena Coroa Vermelha, na Bahia, a advogada decidiu fazer direito por enxergar na profissão uma forma de lutar pelo acesso à terra. "Embora Coroa Vermelha tenha sido demarcada no final da década de 1990, houve problemas e várias áreas indígenas estão fora dessa demarcação, ou seja, ainda estão pendentes", explica ela, cuja luta pelo território a fez chegar ao Supremo.
Em setembro do ano passado, ela fez uma sustentação oral na corte se posicionando contra o marco temporal. "Foi um momento de muita responsabilidade, mas de muito prazer. Foi a concretização de um sonho, porque virei advogada justamente para fazer isso: defender os direitos dos povos indígenas."
Outra conquista importante aconteceu em 2020, quando Samara conseguiu barrar a reintegração de posse contra uma comunidade próxima à sua aldeia. "Isso foi no auge da pandemia, sendo que existem decisões do STF que proíbem reintegrações durante esse período", diz ela. A advogada lembra que as ações afirmativas ajudaram a formar uma geração de indígenas com diploma universitária. Ela própria foi cotista na UFBA (Universidade Federal da Bahia), instituição em que se formou em 2016.
Em 2011, o Brasil tinha 9.756 universitários indígenas, número que saltou para 56.257 em 2019 - um crescimento de 476,6% em oito anos. "Jovens indígenas entrarem nas universidades foi um desejo das lideranças mais velhas para que a gente pudesse atuar na luta. Nós, advogados, somamos em uma luta que é histórica."
De acordo com Alvaro de Azevedo Gonzaga, professor de direito da PUC-SP, a atuação de advogados indígenas é uma forma de romper com uma prática jurídica de raízes europeias e coloniais. "O indígena que busca o saber jurídico busca construir uma teoria decolonial do direito e, para além disso, busca construir essa dimensão de não subalternização, como acontecia na legislação brasileira sobre esses povos até a Constituição de 1988" diz ele, que tem ascendência guarani kaiowá e escreveu o livro "Decolonialismo Indígena".
O acadêmico explica que, durante séculos, as leis do país foram pensadas para perseguir ou tutelar os indígenas. Na colônia, diz ele, havia decretos que autorizavam a captura desses grupos. Com a Independência, em 1822, a situação pouco muda. "A Constituição de 1824 não trazia direitos nem garantias aos povos originários. Continuava mantendo-os na condição de subalternos e isso vai avançando ao longo dos anos. Só na Constituição de 1946 que a União começa a legislar sobre a incorporação dos indígenas ao que chamavam de comunhão nacional."
Gonzaga diz que essa visão integracionista buscava eliminar características culturais desse grupo, algo praticado também na ditadura militar. "É em 1988, com a Constituição, que se tem a cidadania aos povos indígenas."
O advogado Eliesio Marubo, 42, lembra que lideranças indígenas desempenharam papel importante na Constituinte, garantindo mais participação política e social aos povos originários. "A nossa geração tem utilizado o caminho sedimentado por essas lideranças do passado. Isso tem feito com que a gente seja uma voz firme contra um sistema contrário à nossa forma tradicional de viver."
Eliesio decidiu ainda jovem cursar direito. Ele conta que, aos 16 anos, foi enviado a Cruzeiro do Sul, no Acre, com a missão de estudar e retornar com conhecimentos que auxiliassem sua comunidade, a aldeia Maronal, na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, região que abriga o maior número de povos isolados do mundo.
Nas últimas décadas, essas populações se tornaram alvo da atuação de missionários, que entram nas comunidades para tentar convertê-las. Representando a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), Eliesio conseguiu em 2020 que a Justiça determinasse a expulsão dessas pessoas e proibisse que elas tivessem contato com os isolados.
"As nossas espadas têm sido a Constituição, o domínio da língua e do pensamento de vocês para fazer a defesa dos nossos interesses. Interesses esses que estão estabelecidos no texto constitucional. De fato, o direito tem sido a última trincheira de defesa para a existência dos povos indígenas", diz ele.
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