O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgão responsável pela realização do Enem, foi alertado por servidores que o gabarito da prova deste ano sofreu alteração indevida após sua elaboração.
O instituto, no entanto, ignorou o alerta e só corrigiu o gabarito da prova um dia depois de tê-lo divulgado, após repercussão negativa nas redes sociais.
Duas questões do Enem 2020 que abordavam o racismo tiveram as respostas corretas alteradas no gabarito divulgado pelo órgão.
Com a alteração, uma das questões apontava como correta a alternativa que considerava a decisão de uma mulher negra de não querer alisar os cabelos como uma "postura de imaturidade". A pergunta foi elaborada tendo como resposta certa a que identificava o comportamento da mulher como "atitude de resistência".
Outra questão apontava que discriminação racial em sistemas de inteligência artificial, como buscas do Google, estaria relacionado à linguagem. A elaboração original da prova apontava a resposta certa como sendo o preconceito.
A Folha teve acesso a um documento enviado à Diretoria de Avaliação da Educação Básica (Daeb), área diretamente responsável pela elaboração da prova, em que os servidores alertam que o gabarito divulgado em 27 de janeiro tinha erros.
Segundo o documento, as respostas divulgadas como corretas não eram as que tinham sido apontadas pelos elaboradores das questões.
O ofício destaca que todas as questões usadas na prova passam antes por análise de professores especialistas e por pré-teste com alunos de escolas públicas e privadas. Em nenhuma dessas etapas, esses 2 itens foram considerados racistas porque apresentavam a resposta correta.
Também destacam que especialistas da área de linguagens avaliaram e revisaram as questões e o gabarito e não encontraram nenhum erro. A última revisão dos técnicos da área foi feita antes da prova ir para a gráfica.
"Os itens que compõem o Enem 2020 foram elaborados com os gabaritos corretamente publicados [até a alteração indevida], de modo que nunca exploraram qualquer abordagem preconceituosa e discriminatória", diz o ofício.
"Todos os itens foram concebidos em consonância com o compromisso social do exame, que fundamenta o aspecto técnico pedagógico da construção do Enem", continua.
O Inep divulgou o gabarito oficial da primeira aplicação do Enem 2020 na tarde de 27 de janeiro. No mesmo dia, alunos, professores, especialistas, entidades e políticos se mobilizaram nas redes sociais para denunciar a abordagem racista da prova diante do que consideravam respostas corretas nas duas questões sobre o assunto.
Foi apenas no dia 28 que o Inep divulgou uma nota em que informou ter identificado "inconsistência" no gabarito e alterou as alternativas consideradas corretas para as duas perguntas.
Servidores alertaram diretores do Inep sobre o erro no mesmo dia de publicação da primeira versão do gabarito. Eles pediam ainda que o órgão esclarecesse como e porquê houve a alteração indevida. O que não ocorreu.
O Inep informou apenas se tratar de uma "inconsistência" e informou que a modificação foi feita após o retorno das provas para o Inep. O órgão não explica porque os erros ocorreram exatamente em duas questões que tratavam sobre racismo.
Questionado sobre o documento e o alerta dos servidores, o Inep também não respondeu. Tampouco informou se apura quem seria responsável pela alteração no gabarito.
Desde o início do governo Jair Bolsonaro (sem partido), especialistas e servidores que elaboram o Enem temem por interferências na prova. O presidente em diversas ocasiões criticou o exame e chegou a dizer que, sob sua gestão, questões sobre alguns temas seriam barradas.
Bolsonaro já criticou em edições anteriores perguntas que abordavam racismo e homofobia. Neste ano, ele reclamou de uma questão que comparava os salários dos jogadores Marta e Neymar.
"Você vê as provas do Enem. O banco de questões do Enem não é do meu governo ainda, é de governos anteriores. Tem questões ali ridículas ainda, ridículas", disse Bolsonaro na ocasião.
Em 2019, no primeiro ano do governo Bolsonaro, o Inep criou uma comissão para censura ideológica de temas no banco de itens, que agrupa as questões usadas nos exames federais. O Inep nunca divulgou quais temas e questões foram barrados.
A comissão vetou 66 perguntas que foram avaliadas como tendo "abordagens controversas" e "teor ofensivo". Os itens condenados estão, principalmente, nas áreas de ciências humanas e linguagens, 29 e 28 itens respectivamente. Outros 5 eram de ciências da natureza e 4, de matemática.
A criação da comissão veio a pedido de Bolsonaro, que antes acumula críticas, de teor ideológico, sobre questões do Enem. As duas edições do exame a cargo deste governo deixaram de contar, de forma inédita, com perguntas sobre a ditadura militar no Brasil (1964-1985), período marcado por restrições civis e tortura, mas elogiado e defendido por Bolsonaro e apoiadores.
Bolsonaro tem um discurso de minimização do racismo, problema que ele já disse que não existe no país.
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