O Supremo Tribunal Federal (STF) pode definir nesta sexta-feira (14) as bases para os julgamentos de casos de jornalistas feridos por policiais em manifestações e o direito de eles serem indenizados pela administração pública.
As balizas virão do caso do repórter-fotográfico Alex Silveira, que foi atingido no olho esquerdo por uma bala de borracha disparada por um policial militar de São Paulo quando cobria para o jornal Agora, do Grupo Folha, um protesto de servidores na avenida Paulista, em 2000. A lesão deixou o fotógrafo com apenas 15% da visão no olho.
Em primeira instância, a Justiça de São Paulo reconheceu o direito de Alex de ser ressarcido pela administração estadual, no valor de cem salários mínimos, mas, na apelação, o Tribunal de Justiça paulista derrubou essa decisão.
Os desembargadores disseram que a "culpa exclusiva" pelo ferimento foi do jornalista, que, para eles, teria assumido um risco excessivo ao se colocar entre os manifestantes e a polícia.
Segundo a defesa de Alex, caso a decisão do tribunal de São Paulo prevaleça no STF, ela poderá configurar um precedente perigoso e funcionar como um salvo-conduto a comportamentos violentos da polícia em manifestações públicas, causando constrangimentos à atuação da imprensa.
Taís Gasparian, advogada da equipe que defende o jornalista, afirma que "a conduta policial fere diversos preceitos constitucionais, que protegem a dignidade da pessoal humana, a cidadania, a liberdade de expressão e de informação".
"Para que tenhamos uma imprensa livre, é essencial que jornalistas e fotógrafos estejam em lugares de tumulto. Precisam estar presentes em guerras, rebeliões, revoluções e em simples manifestações em centros urbanos", diz.
O processo do jornalista vai nortear os julgamentos futuros sobre o tema porque o STF decidiu que o caso reúne os requisitos para servir de modelo, e assim atribuiu a ele a condição que no jargão jurídico é chamada de repercussão geral.
O princípio jurídico em discussão é o da chamada responsabilidade objetiva do Estado, que prevê que sempre que uma pessoa em funções públicas causar dano a alguém, a administração deve indenizar, independentemente da intenção ou culpa do servidor.
Mas no processo do repórter-fotográfico essa regra foi afastada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o argumento de que Alex contribuiu para que o resultado do episódio fosse o ferimento em seu olho.
O fato de o julgamento envolver uma ameaça à atividade da imprensa no país levou entidades de defesa do jornalismo e da liberdade de manifestação a ingressarem no processo.
Diante da relevância do assunto, a Associação Brasileira de Jornalismo investigativo (Abraji) e a Artigo 19, entidade internacional de defesa dos direitos humanos, pediram ao STF para serem ouvidas na causa como partes interessadas, condição que na linguagem técnica do direito é denominada amicus curae.
Marcelo Träsel, presidente da Abraji, vê com preocupação a possibilidade de o STF não condenar o estado de São Paulo a indenizar Alex.
"O risco é passar um recado para as Polícias Militares de que tudo vale e que é possível abusar da força sem sofrer nenhum tipo de penalidade. Isso só vai prejudicar a democracia no Brasil. Os protestos são elemento fundamental da vida democrática, então é um caso que vai ter repercussões para muito além do jornalismo", diz.
Para a diretora-executiva da Artigo 19, Denise Dourado Dora, "neste caso houve uma evidente violação do direito humano do Alex, já que o Estado não garantiu sua integridade física e nem sua liberdade de expressão para o exercício de sua tarefa de cobertura fotográfica de uma manifestação".
A Advocacia-Geral da União (AGU), que atua na defesa da administração federal, também ingressou no processo como amicus curae, mas se manifestou para demonstrar preocupação caso o resultado seja favorável a Alex.
"Importa relevar que a regra geral a ser consolidada no presente julgamento não pode inviabilizar o adequado desempenho de atribuições legais e constitucionais de órgãos de segurança, sobretudo em hipóteses nas quais a voluntariedade da vítima em se colocar em situação de confronto elucide a existência de sua culpa exclusiva", alegou a AGU.
Hoje com 49 anos e morando na cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, Alex estuda oceanologia na Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e, apesar das severas restrições causadas pelo ferimento no olho, realiza alguns tipos de trabalho de fotografia, principalmente na área do meio ambiente.
"Minha vida mudou absurdamente. Há 20 anos tenho uma cicatriz que vou carregar para o resto da vida, independentemente do dinheiro que eu receba. Hoje enxergo cores e formas, só consigo identificar as pessoas que estão a dois metros de distância de mim", conta Alex.
Antes de ter o olho esquerdo ferido na manifestação, Alex já tinha complicações no olhar, uma vez que um problema congênito reduziu a apenas 15% sua visão no olho direito.
O repórter-fotográfico diz ter ficado indignado com a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que atribuiu a ele a culpa por ter sido atingido pela bala de borracha disparada por um policial militar.
"É uma forma de censura. Começou algum tipo de encrenca, nós temos que deixar a área, porque a culpa será nossa em caso de acidente? Aí eles fazem o que quiserem, pois não vai haver ninguém registrando. Para nós estar lá não é só um direito, é uma obrigação", afirma.
Nesse tipo de processo no STF, que na terminologia do direito é denominado recurso extraordinário, o Ministério Público Federal é ouvido na condição de fiscal da lei. Em seu parecer na causa, o procurador-geral da República, Augusto Aras, disse que o repórter-fotográfico tem direito a receber a indenização do Estado.
"Excluir a responsabilidade objetiva do Estado pelo dano causado à vítima vai de encontro aos direitos e obrigações atrelados ao exercício da profissão de jornalista", afirmou.
Aras ressalta que é preciso "respeitar o papel de relevo da imprensa como mecanismo de fiscalização social".
O julgamento do STF deve ser feito na forma virtual.
Segundo Taís Gasparian, advogada de Alex, "o Supremo Tribunal terá a oportunidade de corrigir uma grande injustiça. É injustificável que, em uma manifestação pacífica e sem armas, o repórter, que segurava uma máquina fotográfica, tenha sido atingido por uma bala de borracha em seu olho. Para atingi-lo na vista, a arma certamente estava dirigida na direção da sua cabeça".
"O reconhecimento da responsabilidade do Estado é essencial para que esse tipo de atitude não se repita", completa Taís.
A Folha de S.Paulo procurou a PGE-SP (Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo), órgão do estado que cuida da defesa da administração paulista no processo. A assessoria de imprensa afirmou que "em respeito aos trâmites judiciais, a PGE não antecipa argumentação fora dos autos".
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