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Marcas da Lava Jato serão testadas com nova lei de abuso de autoridade

Marcas da Lava Jato serão testadas com nova lei de abuso de autoridade

Condução coercitiva, divulgação de grampo e prisão preventiva podem ser enquadradas em regra que passa a valer nesta sexta-feira (3)

Publicado em 2 de janeiro de 2020 às 12:22

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Sergio Moro: ministro da Justiça era o juiz responsável pelos processos da Operação Lava Jato . (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Em março de 2016, o então juiz federal Sergio Moro, responsável pelas sentenças da Operação Lava Jato, divulgou gravações de conversas telefônicas relacionadas ao ex-presidente Lula (PT), então alvo de investigações.

Havia áudios de diálogos do petista com assessores, aliados, políticos e até com a então presidente Dilma Rousseff (PT), que tinha foro especial e, na época, enfrentava um processo de impeachment.

No pacote de gravações, havia também uma conversa de Marisa Letícia, ex-primeira-dama, com seu filho Fábio. Ela reagia com palavrões ao panelaço que ecoava pelo país pedindo a derrubada de Dilma.

A verborragia de Marisa, que morreria no ano seguinte após um acidente vascular cerebral, nada tinha a ver com a investigação de corrupção envolvendo o marido. Ainda assim, Moro decidiu tornar pública a conversa familiar.

Na nova lei de abuso de autoridade, aprovada pelo Congresso e que entra em vigor nesta sexta-feira (3), há um artigo que torna crime, com pena de até quatro anos de prisão, a divulgação de "gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado".

A nova legislação atinge, entre outros órgãos, integrantes de polícias, Ministério Público e Judiciário e especifica condutas que devem ser consideradas abuso de autoridade, além de prever punições. Boa parte das ações já era proibida, mas de maneira genérica e com punição branda.

Juízes, membros do Ministério Público, defensores públicos e advogados ouvidos pela reportagem dizem duvidar que a nova lei provoque uma onda de punições, até mesmo devido aos filtros após as denúncias. Uma representação contra um eventual abuso de autoridade necessariamente tem que ser ajuizada por um membro do Ministério Público e julgada por um magistrado.

Aprovada pelo Congresso em setembro, a nova lei tramitou com rapidez após a divulgação de mensagens trocadas entre integrantes da Lava Jato, em meados do ano passado. A revelação colocou em dúvida a imparcialidade de Moro e da equipe da força-tarefa.

A lei contra o abuso de autoridade teve forte reação contrária por parte de associações de magistrados, membros do Ministério Público e policiais. O próprio Moro, hoje ministro da Justiça, foi contrário à nova legislação, encarando-a como um ataque ao combate à corrupção.

Bolsonaro chegou a vetar pontos da lei, mas esses foram depois derrubados pelo Congresso, o que foi visto como recado para a Lava Jato. 

Com isso, foi retomada, por exemplo, a punição de até quatro anos de detenção para quem constranger um preso -mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência- a produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro. 

A lei não é retroativa, mas acadêmicos e criminalistas analisaram, a pedido da reportagem, alguns casos da Lava Jato em que houve polêmica sobre supostos abusos por parte do juiz e dos investigadores.

Ainda durante a investigação contra o ex-presidente Lula, em 2016, Moro autorizou um grampo no telefone central do escritório de advocacia que defende o petista. Há relatórios que mostram que policiais federais monitoraram conversas entre os advogados do ex-presidente durante 23 dias.

Não houve punição em nenhum desses casos. Mas isso não quer dizer que não houvesse lei coibindo tal conduta.

O sigilo da conversa entre advogados, por exemplo, está previsto no Estatuto da Advocacia, que determina "a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia".

"É que no Brasil há leis que pegam e leis que não pegam. Os colegas juristas do exterior nem entendem isso, mas é assim aqui", diz David Teixeira de Azevedo, professor de direito penal da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da USP.

"A atual lei de abuso de autoridade, porém, reforça o que já era crime e prevê penas maiores. Ela é mais clara ao descrever condutas específicas", afirma Teixeira.

Teixeira diz que a intimidade das conversas entre Marisa Letícia e o filho Flávio também estavam resguardadas pela lei, antes mesmo da nova legislação de abuso de autoridade.

"Você tem os direitos e garantias fundamentais. Um deles é o direito à intimidade e à privacidade. E outra é o direito ao sigilo telefônico, telemático e o sigilo fiscal. O sigilo pode ser quebrado? Pode. O sigilo só pode ser invadido com ordem judicial. Isso é uma coisa. Uma vez invadido, isso pode se tornar público? Nunca."

Outro ponto da nova lei prevê pena de detenção de um a quatro anos e multa para o juiz que decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado de forma "manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo". 

Durante a tramitação do projeto de lei, este item foi apelidado "artigo Lula", já que o ex-presidente, em 2016, foi alvo deste tipo de medida cautelar sem antes ter sido intimado a depor. 

Na época, os advogados do ex-presidente representaram o então juiz Moro na Procuradoria-Geral da República por abuso de autoridade, com base na lei antiga, de 1965, que previa uma pena de dez dias a um ano de detenção. A Procuradoria não deu seguimento à representação. 

Em 2018, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional decretar condução coercitiva para colher depoimento, mas mesmo assim, em 2019, os parlamentares incluíram esse ponto na nova lei de abuso de autoridade.

As prisões preventivas, usadas em larga escala na Lava Jato, também são alvos da nova lei. O então juiz Moro decretou várias prisões cautelares e muitas delas se arrastaram por meses e até mais de um ano sem uma condenação.

O artigo 9º da nova norma prevê detenção de um a quatro anos e multa para o juiz que decretar "medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais".

Incorrerá na mesma pena o magistrado que, "dentro do prazo razoável", deixar de relaxar a prisão "manifestamente ilegal, deixar de substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa ou deixar de conceder liberdade provisória quando manifestamente cabível".

Helena Lobo da Costa, professora de direito penal da USP, chama a atenção para dois pontos positivos da nova lei com relação aos procedimentos da Lava Jato.

"A meu ver, o que a nova lei traz de importante, pensando nos procedimentos da Lava Jato, são duas coisas: especificidade das condutas. Em vez de usar o crime geral de constrangimento ilegal do Código Penal, eu tenho dispositivos específicos para o caso de condução coercitiva manifestamente ilegal, etc. Isso é importante sobretudo para a clareza da interpretação", diz Costa.

"E a nova lei consolida um novo espírito com relação a estas condutas, que antes eram vistas de forma mais permissiva."

ENTENDA A LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE

O que pretende a lei?

  • O texto, que entra em vigor no próximo dia 3, especifica condutas que devem ser consideradas abuso de autoridade e prevê punições. Boa parte das ações já são proibidas, mas o objetivo é punir o responsável pelas violações

Que condutas são consideradas abuso?

O que torna as condutas criminosas?

  • É necessário que o ato seja praticado com a finalidade de prejudicar alguém, beneficiar a si mesmo ou a outra pessoa ou que seja motivado por satisfação pessoal ou capricho

Que exemplos de casos da Lava Jato poderiam ter sido enquadrados na nova lei, caso ela já estivesse valendo à época?

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