SÃO PAULO, SP - O marco temporal para terras indígenas não tem base na Constituição, cria insegurança jurídica para o Brasil e não vai resolver conflitos no campo. Pelo contrário, deve incentivar grilagem, prejudicar a segurança fundiária e econômica em territórios como a Amazônia e incentivar a violência.
É o que aponta um relatório do Núcleo de Justiça Racial da FGV (Fundação Getulio Vargas) Direito SP obtido com exclusividade pela Folha, que será publicado em 7 de junho. O documento reúne análises e dados debatidos em dois eventos da instituição.
O marco temporal deve ser votado nesta terça-feira (30) na Câmara dos Deputados, após a aprovação de urgência na última quarta (24), em semana de reveses na política ambiental do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Segundo a ideia, indígenas só teriam direito às suas terras se pudessem comprovar uso permanente e necessário à sua reprodução física e cultural em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição.
Com a votação, a Câmara tenta se antecipar à retomada do julgamento do tema no STF (Supremo Tribunal Federal), prevista para o dia 7.
O relatório aponta que não há base na Constituição Federal ou em tratados dos quais o Brasil é signatário para um marco temporal para o direito de indígenas ao território. "Existe um flagrante vício de forma, teria de ser tratado como PEC (Proposta de Emenda Constitucional). Mesmo assim, como bem escreveu o ministro relator Edson Fachin em seu voto, direitos fundamentais não são passíveis de retrocesso", afirma Mauricio Terena, assessor jurídico da Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).
O PL (projeto de lei) 490/2007 cita votos no julgamento sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR) no STF, que fala em um fato indígena — a ocupação em outubro de 1988. A tese é rejeitada pelos críticos, que apontam assassinatos e deslocamentos de populações indígenas em décadas anteriores.
Além disso, cinco acordos dos quais o Brasil é signatário impedem a definição de um marco temporal, entre eles a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. O compromisso determina que as comunidades indígenas sejam consultadas sobre decisões legislativas ou administrativas que afetem seu modo de vida. O PL 490 quer flexibilizar a consulta, incluindo casos de exploração de recursos minerais ou hídricos.
Segundo o relatório, o direito dos indígenas é anterior à existência do Estado brasileiro, que apenas deve reconhecer suas posses. Para Manuela Carneiro da Cunha, integrante da Comissão Arns e participante da redação sobre os povos indígenas na Constituinte, o objetivo das demarcações é preservar a memória viva dos povos originários do Brasil.
"Estão agitando espantalhos, como dizer que Copacabana deve ser demarcada para os tupinambás. Não se trata de abolir a história", afirmou. "Trata-se de um resgate do que ainda é resgatável. De memória viva, ligada a um território e ao que se perdeu por coisas que aconteceram entre o século 16 e o 20."
O relatório indica a fragilização de terras demarcadas e ainda sob análise a partir da aprovação do marco temporal. Segundo o texto, há 232 terras que aguardam a conclusão do processo, cerca de um terço dos territórios indígenas identificados no país.
Um dos casos de insegurança é o da Terra Indígena Limão Verde, que teve a homologação suspensa porque os indígenas não teriam provado a ocupação por volta de 1988, "a despeito da apresentação de documentos que atestavam o pleito a órgãos públicos pela demarcação da área desde, pelo menos, a década de 1960", diz o documento.
Segundo o documento, dados preliminares indicam que o marco temporal é a causa para 18 de 53 terras indígenas com demarcação questionada no STF.
A TESE
O projeto de lei que cria o chamado marco temporal estabelece que serão consideradas terras indígenas os lugares ocupados por povos tradicionais até o dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. A Carta Magna não prevê esse marco como critério, já que indígenas são povos originários que estão presentes no país muito antes da colonização europeia.
A CRÍTICA
Os movimentos indígenas discordam da tese e afirmam que, em 1988, seus territórios já haviam sido alvos de séculos de violência e destruição de aldeias; portanto, entendem que as terras que são de direito dos povos não devem ser balizadas por uma data.
O STF
O Supremo pautou para 7 de junho a retomada do julgamento que vai decidir se a tese é válida ou não. Até agora, o ministro e relator Edson Fachin votou contra o marco. O ministro Kassio Nunes Marques, a favor.
O PROJETO DE LEI
Paralelamente, tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei que institui o marco temporal. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), tenta aprovar o texto antes do julgamento do STF.
"O marco temporal vai fazer o contrário de trazer a paz no campo", disse Ana Alfinito, pesquisadora do Núcleo de Justiça Racial da FGV. "Na votação do PL, as pessoas defendiam isso em nome de uma paz no campo, sendo que os dados mostram que o marco temporal vai dificultar a destinação de terras públicas e aumentar a incerteza sobre o domínio das áreas."
O relatório também critica a expansão de fronteiras agropecuárias para aumentar produção e renda na região da Amazônia, que tem os empregos concentrados no setor de serviços.
"Não precisamos mais ocupar terra para a produção agrícola no Brasil", afirmou Alfinito. "Estes dados estão no relatório. Um terço das áreas desmatadas nos últimos 30 anos está ocioso, abandonado."
A expectativa pela aprovação do marco temporal se traduz, segundo os especialistas, em um sentimento de falta de regras e fiscalização, o que se choca com os movimentos de um mercado cada vez mais regulado pressão ambiental.
"Não é possível que, em pleno ano de 2023, a gente permaneça em um modelo que vilipendia direitos humanos e cerceia o direito de povos indígenas. E flexibilizar consulta prévia e transferir demarcação para o Legislativo são desfigurações do artigo 231 da Constituição. É colonial", afirmou Mauricio Terena. "Não dá para pensar o bem viver dos povos indígenas sem o território."
Além da economia, serviços ambientais como a proteção da vegetação e a captura de 13 bilhões de toneladas de carbono também seriam afetados. Segundo o texto, menos de 2% do desmatamento histórico na Amazônia brasileira ocorreu dentro de terras indígenas, que somam um quarto da área da região. Já as propriedades rurais, que chegam a 17% do território da floresta, concentram 28% da derrubada.
Se aprovado, afirmam documento e especialistas, o marco temporal pode enfraquecer investimentos, a produção e a capacidade de o país enfrentar mudanças climáticas.
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