Ao mesmo tempo em que a medicina se torna cada vez mais feminina, a desigualdade salarial das médicas é maior do que a encontrada na média de todas as ocupações de mulheres no país.
Elas, que representam 45,6% dos 452.801 dos profissionais médicos do país, também continuam pouco presentes em cargos de liderança nos conselhos e entidades da categoria.
Em 2018, o rendimento médio das médicas em atividade no Brasil, com idades entre 25 e 49 anos, equivalia a 71,8% do recebido pelos médicos, segundo a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do IBGE: R$ 12.618 contra R$ 17.572. Nessa faixa etária, as médicas já são maioria: 53,2% dos profissionais ativos.
Elas, que representam 45,6% dos 452.801 dos profissionais médicos do país, também continuam pouco presentes em cargos de liderança nos conselhos e entidades da categoria. A diferença é maior do que a média geral de rendimento de todas mulheres ocupadas nessa faixa etária (R$ 2.050), que equivale a 79,5% do recebido pelos homens (R$ 2.579).
Os dados do IBGE, compilados a pedido da reportagem pelo professor da USP Mario Scheffer, coordenador da Demografia Médica, corroboram estudo sobre o tema publicado na revista científica British Medical Journal em 2019. O trabalho mostrou que a desigualdade de renda a favor dos médicos permaneceu mesmo após ajustes de variáveis, como especialidade, carga horária, anos de formado e local de trabalho.
"A feminização na medicina é só um fenômeno quantitativo, não quer dizer maior igualdade de gênero. A presença feminina está aumentando, mas isso não se reflete em igualdade de salários ou de maior presença no corpo docente das faculdades, nas entidades representativas e nos cargos de lideranças administrativas dos grandes hospitais", diz Scheffer.
Na próxima terça (10), o Sindicato dos Médicos de São Paulo lança uma campanha a favor da igualdade salarial.
Segundo a infectologista Juliana de Carvalho, 35, secretária de assuntos jurídicos do sindicato, a proposta é que o tema esteja em todas as negociações com os empregadores. "Além de menores salários, as mulheres sofrem com a precarização do trabalho. Com a 'pejotização' das equipes, não têm férias, não têm licença-maternidade", diz ela, mãe de dois filhos e que trabalha 40 horas semanais em serviços públicos e privados. Para ela, a sobrecarga de trabalho é um dos fatores que levam muitas médicas a não buscar cargos associativos.
Não há um levantamento oficial da participação de mulheres nesses cargos, mas basta olhar os sites das principais entidades médicas para notar as discrepâncias. Tanto no CFM (Conselho Federal de Medicina) quanto na AMB (Associação Médica Brasileira), a presidência e todas as vice-presidências são ocupadas por homens. As mulheres figuram a partir da secretaria-geral. No CFM, dos 11 cargos da diretoria, três são ocupados por mulheres. Atualmente, elas representam um quarto dos conselheiros médicos no país.
Para Dilza Teresinha Ambrós, secretária-geral do CFM, uma maior participação de médicas nas diretorias dos conselhos é só uma questão de tempo. "Ainda é pouco, mas temos avançado bastante."
A composição da nova diretoria da centenária ANM (Academia Nacional de Medicina) é ainda mais discrepante. Todos os 15 integrantes, empossados na última terça (3) para o biênio 2020-2021, são homens. "É inegável a necessidade de termos mais mulheres ocupando posições de destaque. Mas elas também precisam buscar essas oportunidades, se candidatarem", afirma o oftalmologista paulista Rubens Berfort Filho, primeiro médico fora do Rio de Janeiro a assumir a presidência da ANM.
A cirurgiã Angelita Habr-Gama e a psiquiatra Carmita Abdo são algumas das médicas pioneiras em entidades representativas de suas áreas.
Gama presidiu as sociedades brasileira e latino-americana de coloproctologia e o Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva. Abdo foi a primeira mulher a ocupar a presidência da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), entre 2017 e 2019, e é secretária-geral da Associação Médica Brasileira. "Eu nunca pleiteei a vida associativa, ela foi uma consequência da minha carreira acadêmica. Eu pertenço a alguns colegiados há muito tempo, mas uma coisa maior, como a presidência da ABP, só aconteceu na sexta década da minha vida", diz Abdo, 70.
Segundo ela, é preciso vocação para ocupar cargos de liderança que exigem dedicação extra e, muitas vezes, colocam a pessoa numa posição solitária. "Você tem que tomar decisões, resolver impasses e diferenças. Entendo que muitas pessoas, homens e mulheres, não queiram isso". Uma das experiências que mais a agradou durante a gestão ABP foi a oportunidade de conhecer de perto a realidade da psiquiatria no país e receber muitas manifestações de carinho e respeito. "As meninas diziam: 'você é minha inspiração'. Fiquei emocionada."
A psiquiatra afirma que nunca se sentiu discriminada ou desvalorizada dentro da medicina por ser mulher. "Nunca esperei menos. A gente pode e deve perseguir o que deseja. Mas precisa ter a autoestima no lugar."
Primeira mulher titular em cirurgia da USP, a primeira a ser aceita pela sociedade americana de cirurgia e a primeira premiada pela sociedade europeia de cirurgia. Desde 1952, quando entrou na Faculdade de Medicina da USP, aos 19 anos, Angelita Gama coleciona pioneirismos.
Neste domingo (8), a médica lança a biografia "O não não é resposta" (DBA Editora), escrita por Ignácio de Loyola Brandão. Na obra, ela relata as barreiras enfrentadas e as realizações na área cirúrgica, ainda hoje uma das com menor número de mulheres. "O primeiro não que eu ouvi foi dos meus pais quando optei pela medicina e eles queriam que eu fosse professora como minhas irmãs. Depois, quando decidi pela cirurgia, o chefe da residência disse que era melhor eu ir para a área clínica, que a cirurgia era para homens. Fui em frente, prestei concurso e passei."
Quando decidiu pela especialidade de coloproctologia voltou a enfrentar resistência. Após conseguir uma bolsa para estagiar em um hospital de Londres especializado em cirurgias colorretais, foi barrada inicialmente sob o argumento de que a instituição só aceitava homens. "Fui a primeira mulher a estagiar lá."
Ao entrar para o mercado de trabalho, as coisas se tornaram mais simples, segundo ela. "Sempre trabalhei em pé de igualdade, no mesmo nível de trabalho dos homens, ou até mais", afirma. Casada há 56 anos com o também cirurgião Joaquim Gama, a médica diz que continua bem humorada e satisfeita com a vida, operando no mesmo ritmo de antes. "Levanto às 6h da manhã e só volto pra casa à noite. Felizmente, tenho uma saúde muito boa, uma resistência física excelente. Aguento firme o meu trabalho em pé de igualdade com meus colegas até mais jovens."
Para ela, que não tem filhos, as mulheres são tão boas quanto os homens no exercício profissional, mas, quando se tornam mães, tendem a dedicar um tempo menor à carreira e também enfrentam mais dificuldades para assumir cargos associativos. "Em geral, as funções da maternidade acabam se tornando prioritárias para as mulheres. Eu nunca tive vocação maternal, mas sempre tive muita vocação para operar. Descobri muito cedo o meu dom."
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