A primeira coisa que Kathlen fazia ao chegar todos os dias às 9h na loja da Farm, em Ipanema, era abraçar um por um. Muitas vezes gritando, sempre animada, recebia pelo nome as clientes que já a chamavam de "amiga".
Fazer vínculos era coisa fácil para a mulher de 24 anos que trabalhava na marca de roupas de alto padrão da zona sul carioca desde os 18. Negra e grávida de quatro meses, teve esses vínculos quebrados à força na tarde desta terça (8), baleada no chão da favela.
Kathlen de Oliveira Romeu foi atingida enquanto ia visitar a família no Complexo do Lins, na zona norte do Rio, onde nasceu e cresceu e que deixou há apenas um mês e meio justamente pelo medo da violência, após a descoberta da gestação. Ela foi enterrada nesta quarta (9).
Na tarde desta quarta-feira (9), cerca de 40 pessoas, inclusive amigos e parentes de Kathlen, protestaram contra a violência policial na região do Complexo do Lins, zona norte do Rio, segundo informações da Globonews.
Ela viveu ali com a mãe, a avó e um tio, mas decidiu se mudar recentemente com a mãe e o companheiro da mãe. Aguardava ainda um apartamento que comprara para construir a própria família com o namorado, Marcelo Ramos, segundo a amiga inseparável e também vendedora Carolinne Carneiro, 28.
Casar-se era um sonho antigo, assim como trabalhar na área em que acabara de se formar. Recentemente usava o conhecimento como designer de interiores para planejar o quarto do bebê, que se chamaria Zayo, a terra prometida na simbologia hebraica, ou Maya, nome que sugere a pureza da água ou o amor materno.
Estava ainda se descobrindo como mãe, assustada com o futuro. Ria, chorava e tinha medo, um misto de sentimentos, como descreveu em uma das últimas publicações no Instagram, onde também divulgava as fotos como modelo. "Talvez [esteja tendo] os [sentimentos] mais doidos do mundo, mas vou dar risada lá na frente disso tudo", sonhou.
O riso era descomplicado, raramente tinha tempo ruim, mas quando tinha não sabia disfarçar. Era chorona e gostava de colo, recorda Carolinne. Um desses momentos foi quando percebeu que teria que parar de trabalhar por causa da gravidez.
"Ela ficou arrasada, sempre ficava até muito mais tarde na loja", diz a amiga. "Fazíamos tudo juntas, onde uma ia a outra ia. Sou ciumenta, então quando ela não me chamava eu ficava chateada. Ela sempre foi muito carinhosa e eu era fria, aprendi muito com ela."
Não resistia a uma dança, festa ou barzinho, e já estava "doida querendo sair" depois da pandemia. Às vezes elas se reuniam na casa de alguém ou iam à praia de Ipanema depois do expediente. Um dos últimos encontros lembrados por Gisele Fernandes, 33, também vendedora, foi o aniversário de Kathlen em outubro.
"Ela estava radiante, com um brilho, parecia que estava sentindo que ia ser o último. Estava toda a galera preta que a gente conhece, ela agradecia muito e sorria", conta ela, que faz parte de um comitê racial dentro da Farm. "Estávamos felizes porque estávamos tendo muita oportunidade dentro da empresa", diz.
A marca divulgou internamente que colegas organizaram uma homenagem na fachada da loja onde ela trabalhava, que disponibilizou suporte psicológico aos funcionários que precisem e que está ajudando a família. As vendas feitas com o código de Kathlen terão sua comissão revertida aos parentes.
"Sabemos que nada que fizermos poderá trazer Kath de volta, mas nos comprometemos a acelerar ainda mais nossos processos de inclusão e equidade racial para transformar as cruéis estatísticas que levam vidas jovens negras como a de Kath a cada 23 minutos no nosso país", afirma o comunicado.
Na região metropolitana do Rio, ela foi a 15ª grávida baleada desde 2017, segundo a plataforma colaborativa Fogo Cruzado. Oito delas morreram e quatro foram atingidas quando ocorriam ações policiais. Foi o caso de Kathlen.
De acordo com especialistas sobre o assunto, não existem estatísticas oficiais com um recorte específico para aferir violência contra grávida. Os boletins de ocorrência precisariam ter campos específicos para preenchimento dessa informação, o que, por ora, não existe.
Segundo a versão da Polícia Militar, agentes da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da região foram atacados a tiros num local conhecido como Beco da 14. Houve confronto e, "após cessarem os disparos, os militares encontraram uma mulher ferida" e a levaram ao hospital, onde morreu em seguida, de acordo com a unidade.
A Delegacia de Homicídios da Capital afirmou que ouviu 5 dos 12 policiais que estavam na comunidade e apreendeu 21 armas, sendo 12 fuzis e 9 pistolas. O laudo do IML (Instituto Médico Legal) concluiu que ela foi atingida por apenas um tiro de fuzil, que transfixou seu tórax.
"As diligências seguem para esclarecer todos os fatos e identificar de onde partiu o tiro que atingiu a vítima", disse a corporação em nota. A Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP), da PM, também instaurou apuração paralela.
Horas antes do tiroteio, uma amiga havia convidado Kathlen para almoçar, mas ela disse que estava com muita saudade da avó, com quem viveu a vida inteira. Era ao lado dela que a jovem andava por uma rua da comunidade quando foi baleada. Ela afirma que o tiroteio começou de repente e que a neta caiu logo no início.
"Minha neta morrendo de saudade de mim e eu falando: não vem aqui, porque você pode estar passando, sair um tiro e você perder a sua criança. E como essa semana ficou calmo, eu permiti que ela fosse", disse Sayonara de Oliveira à imprensa na frente do IML.
"Eles estão falando que socorreram a minha neta. Não foi. Eu não estou morta por Deus, porque quando começou o barulho de tiro minha neta caiu, eu pensei que ela tinha se jogado e me joguei em cima dela. E ela estava com um buraco [...] Eu me levantei e falei: gente para de dar tiro, socorre a minha neta. Eles socorreram porque eu gritei, eles não queriam nem que eu fosse no carro com ela", contou.
O porta-voz da PM, major Ivan Blaz, disse ao "Bom Dia Rio", da TV Globo, que não houve operação e que os policiais "lutaram pela vida da Kathlen": "Mais uma vez estamos lidando com um ataque gratuito de criminosos que atuam nessa comunidade. É a mesma facção que atua na Providência, no Jacarezinho, nos Prazeres, e que tem por natureza e ideologia o ataque gratuito contra as forças policiais", declarou.
Em desespero, a mãe Jacklline Lopes, porém, acusa os policiais pela morte. "Se a minha filha fosse morta por bandido eu não falaria nada, porque eu sei que eu moro num lugar que não poderia falar, então eu ficaria na minha. Mas não foi, foi a polícia que matou a minha filha", afirmou no IML.
"Avisa o major [Ivan] Blaz que essa historinha que é contada há anos na televisão de que foi troca de tiros, que [a polícia] foi recebida a tiros, quem foi recebida a tiros foi a minha filha. [...] Eu fui informada por todos que não foi troca de tiro, a polícia estava dentro de uma casa, viu os bandidos e atirou. Se a polícia estava dentro de uma casa, por que não olhou para a rua para ver quem estava passando?", criticou.
Naquela noite, o Hospital Municipal Salgado Filho, no Méier, ficou lotado de familiares e amigos.
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